sexta-feira, 24 de agosto de 2012

Gringuinho Samuel Rawet



Chorava. Não propriamente o medo da surra em perspectiva, apesar de roto o uniforme. Nem para isso teria tempo a mãe. Quando muito uns berros em meio à rotina. Tiraria a roupa; a outra, suja, encontraria no fundo do armário, para a vadiagem. Ao dobrar a esquina tinha a certeza de que nada faria hoje. Os pés, como facas alternadas, cortavam o barro de pós-chuva.
A mangueira do terreno baldio onde caçavam gafanhotos, ou jogavam bola,
tinha pendente a corda do balanço improvisado. Reconheceu-a. Fora sua e
restara da forte embalagem que os seus trouxeram. Ninguém na rua. Os
outros decerto não voltaram da escola ou já almoçavam. Ninguém percebeu-lhe
o choro. A vizinha sorriu ao espantar o gato enlameado da poltrona da
varanda. Conteve o soluço ao empurrar o portão. Com a manga esfregava o
rosto marcando faixas de lama na face. Brilhavam ainda da chuva as folhas
do fícus. Olhou a trepadeira. Novinha, mas já quase passando a janela. Na
sala hesitou entre a cozinha e o quarto. A mãe, de lenço à cabeça, estaria
descascando batatas ou moendo carne. Despertara-lhe a atenção ao lançar os
livros sobre a cômoda. Que trocasse a roupa e fosse buscar cebolas no
armazém. Nada mais. Nem o rosto enfiara para ver-lhe o ar de pranto e a
roupa em desalinho. À entrada do quarto surpreendeu o blá-blá do caçula
que, olhos no teto, tocava uma harpa invisível. Era-lhe estranha a sala, quase
estranhos, apesar dos meses, os companheiros. Os olhos no quadro-negro
espremiam-se como se auxiliassem a audição perturbada pela língua. Autômato,
copiava nomes e algarismos (a estes compreendia), procurando intuir as frases da professora. As vezes perdia-se em fitá-la. Dentes incisivos salientes, os cabelos lembrando chapéus de velhas múmias, os lábios grossos.  Outras, rodeava os olhos pelas paredes carregadas de mapas e figurões.
A janela lembrava-lhe a rua, onde se sentia melhor. Podia falar pouco. Ouvir.
Nem provas nem argüições. O apelido. Amolava-o a insistência dos moleques.
Esfregou ante o espelho os olhos empapuçados. Ontem rolara na vala
com Caetano após discussão. Atrapalhou o jogo. O negrinho cresceu em sua frente no ímpeto de derrubá-lo.
Gringuinho burro!
Ajeitou sobre a cama o uniforme. A lição não a faria. Voltar à mesma
escola, sabia impossível também. Por vontade, a nenhuma. Antigamente,
antes do navio, tinha seu grupo. Verão, encontravam-se na praça e atravessando
o campo alcançavam o riacho, onde nus podiam mergulhar sem medo.
À chatura das lições do velho barbudo (de mão farta e pesada nos tapas e
beliscões) havia o bosque como recompensa. Castanheiros de frutos espinhentos
e larga sombra, colinas onde o corpo podia rolar até a beira do
caminho. Framboesas que se colhiam à farta. Cenoura roubada da plantação
vizinha. A voz da mãe repetia o pedido de cebolas. Coçar de cabeça sem
vontade. No inverno havia o trenó que se carregava para montante, o rio
gelado onde a botina ferrada deslizava qual patim. Em casa a sopa quente de
beterrabas, ou o fumegar de repolhos. Sentava-se no colo do avô recém-chegado
das orações e repetia com entusiasmo o que aprendera. Onde o avô?
Gostava do roçar da barba na nuca que lhe fazia cócegas, e dos contos que
lhe contava ao dormir. Sempre milagres de homens santos. Sonhava satisfeito
com a eternidade. A voz do avô era rouca, mas boa de se ouvir. Mais quando
cantava. Os olhos no teto de tábuas, ou acompanhando a chaminé do fogão,
a melodia atravessava-lhe o sono. Hoje entrara tarde na sala. Não gostava de
chamar a atenção sobre si, mas teve que ir à mesa explicar o atraso. Cinqüenta
pares de olhos fixos em seus pés que tremiam. O pedido de cebolas veio mais forte. Gargalhada maciça em contraponto aos titubeios da boca, olhos e mãos. A custo conteve as lágrimas quando tomou o lugar. Chorara assim quando no primeiro sábado saiu de boné com o pai em direção à sinagoga.  Caetano, Raul, Zé Paulo, Betinho fizeram coro ao fim da rua repetindo em estribilho o gringuinho. Suspenso o chocalho deparou com os olhos do irmão nos seus. Blá-blá. Sorriso mole. Sentara-se. Abrira o livro na página indicada, tenteando como um cego, para entrar no compasso da leitura. Nem às figuras se acostumara, nem às histórias estranhas para ele, que lia aos saltos. Fala gringuinho. Viera de tnis a voz, grossa, de alguém mais velho. Fala gringuinho.  Insistia. Ao girar o pescoço na descoberta da fonte fora surpreendido pela ordem de leitura. Olhou os dentes aguçados insinuando-se no lábio inferior como para escapar. Explicar-lhe? Como? Mudo curvou a cabeça como gato envergonhado por diabrura. Era-lhe fácil a lágrima. Lembrou um domingo.  Enfiou-se pelo pátio com Raul que o chamara à sua casa. No fundo do quintal cimentado, sob coberta, dispusera os dois times de botões. Da copa o barulho, ainda, de talheres, fim do ajantarado. Chamaram. A mãe cortou o melão e separou duas fatias. Raul agradeceu pelos dois. “Ah! é o gringuinho!” Expelida pelo nariz a fumaça do cigarro, o pai soltara a exclamação. Quase o sufoca a fruta na boca. Os tios concentraram nele a atenção. Parecia um bicho encolhido, jururu, paralisado, as duas mãos prendendo nos lábios a fatia. ‘Fala gringuinho!”Coro. Fala gringuinho. Novamente as vozes atrás da carteira. Da outra vez correra como acuado em meio a risos. Recolhido no quarto desabafou no regaço da mãe. Blá-blá. Agitar do chocalho. Um cheiro de urina despertara-o da modorra. Um fio escorria da fralda no lençol de borracha. Fala gringuinho. Sentiu-se crescer e tombar para trás a cadeira.  Em meio à gritaria a garra da velha suspendeu-o amarrotando a camisa. Cercado, alguns de pé sobre as mesas, recolheu-se à mudez expressiva. Da vingança intentada restara a frustração que se não explica por sabê-la impossível.  Blá-blá! A poça de urina principiava a irritá-lo e após esperneios o irmão arrematou em choro arrastado. Agitou o chocalho novamente, com indiferença, olho na rua. O matraqueado aumentara o choro. Não percebeu a entrada da mãe. Sem olhá-lo recolheu o irmão no embalo. Tirou da gaveta a fralda seca, e entre o ninar e o gesto de troca passou-lhe a descompostura.
Insistiu no pedido do armazém. Ele tentou surpreender-lhe o olhar, conquistar a inocência a que tinha direito. Depois gostaria de cair-lhe ao colo, beijá-la
e contar tudo, na certeza de que lhe seria dada a razão. Mas nada disso.  Recolhendo os níqueis procurou a porta. Traria as cebolas. E não contaria que, ao ser repreendido na escola, na impotência de dar razões, quando a velha principiou a amassar-lhe a palma da mão com a régua negra e elástica, não se conteve e esmurrou-lhe o peito rasgando o vestido. Quando atravessou o portão acelerou a marcha impelido pelo desejo de ser homem já. Julgava que correndo apressaria o tempo. Seus pés saltitavam no cimento molhado, como outrora deslizavam, com as botinas ferradas, pelo rio gelado no inverno. 

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