sábado, 3 de março de 2012

O baile do colibri nu Dalton Trevisan

SENTADINHO na escada, mão no queixo: a carinha enrugada no corpo do menino de oito anos. Em cada olhinho suspensa uma lágrima vermelha. O doutor abre a porta. Mais que o João se esforce, não acodem as pernas. — Fique sentado, rapaz. O que foi? — O juiz me chamou. Quer pensão, a desgracida. — A Maria? — Amanhã no fórum. Dez horas. Levo o doutor comigo. — O oficial de justiça que intimou? — Dou uma nota para o doutor. — Não posso, João. Amanhã eu viajo. Ouça meu conselho. — Então não vou. — Se foi chamado, vá. Mas não assine nada. Entendeu bem? — Estou carpindo a rocinha. — Que rocinha é essa? Chega-se o parceiro das noitadas no Balaio de Pulga. — Sou o Carlito, doutor. É uma rocinha de milho. Às meias com o Perereca. — Ih, meu Deus. Logo o Perereca. Não é ele que bebe? — Mais que o pai, doutor. — Só milho torto há de vingar. João cabeceia, um fio de baba fosfórea no queixo imberbe. — Oi, João. Está me ouvindo? Exibe a lingüinha azul do vinagrão — uma ostra que não pode engolir nem cuspir. — O doutor vai. Não é, doutor? — Já disse que não. Você deve ir. Só não assine. Derruba no joelho o chapelão de palha, um risco branco na testinha lavada de suor frio. — Já sei. Não assino. Grugruleja um palavrão e oscila perigosamente no degrau. . — Carlito, não é? Me diga. Ele quis mesmo se enforcar? Subiu na cadeira, enfiou a corda no pescoço, o nó correu. E caiu de pé bem vivinho. — E a Maria? Está com o André? — Do André não sei. Com o Joaquim é todo dia. Não tem segredo. — Como é que pode? Feia, peluda, óculo escuro? — Tem mais, doutor. Quando estavam juntos, o João voltou de repente. As duas da tarde. Deu com ela e o Juca. Na cama. — Não adiantou prendê-la na garupa da bicicleta. — Pelas costas só xinga de Colibri o hominho. — E os barracos quantos são? — Eram três. Agora dois. Vendeu um, que foi desmanchado. E bebeu todinho no Balaio de Pulga. O triste colibri ressona, bolhas de espuma no canino de ouro. — Ei, João? E a tua filha, João? Com quem ficou? — Diabo de nego. Toquei o porco do nego. — Você não respondeu. Está com você? Ou com a Maria? — Comigo. Tanto quer saber. Ajeitei o paiol para o nego. — Que negro é esse? — ... — O negro fez arte com a menina, doutor. — Peste de nego. O nego sujo. — Deu queixa para o sargento? Sacode a cabecinha grisalha, bate a pestana que já se fecha. — O doutor não sabia do baile nu? — Epa, que história é essa? — O negro já de olho na menina. Que é bonitinha. Embebedou o João. O negro na cachaça. O João no vinho tinto. E deu a idéia do baile. — Barbaridade. — Trouxe a filha do Gervásio para o Colibri. E quis para ele a menina. — Ah, negro safado. — O doutor sabe aquela radiolinha do João? Ligou a todo o volume. Nosso Colibri, o mais pequeno e barulhento. No melhor da festa os vizinhos reclamaram do barulho. E a polícia acabou com o baile. — Não me diga. — Quando chegou o sargento viu todos pelados. O negro com a menina do João. E ele com a filha do Gervásio. De doze anos. Que tinha fugido do asilo. Daí o Carlito ri gostoso. O doutor dá um passo para trás. — Ele se gabou. Fui preso, sim. E batia no peitinho sem nenhum cabelo. Antes derrubei dois praças. — Pouca vergonha, João. — Dele não é a culpa, doutor. Foi o negro. O sargento abriu a porta, a música bem alto — e todo mundo nu. . — Com a menina de doze anos! — Tivesse mais, doutor, já seria maior que ele. — ... — Não fez mal para ela. O negro, esse, fugiu pela janela. Mas o João foi fácil. Carregado — nu e esperneando de botinha vermelha — no colo de um praça. Sem tempo de alcançar a pistolinha. — O último dos heróis. — Levaram para a cadeia. As meninas na sala do sargento. Não é que o velho Gervásio quis dar parte do João? A guria, sorte dele, estava inteira. —... — O negro, sim, perdeu a filha do João. Um negro daquele tamanho, já viu? E o juiz casou com separação. — De corpos. E o bandido guardou a menina? - O João arrumou para os dois o ranchinho dos fundos. Furioso o colibri ostenta na cinta o punhal e a pistolinha. — Esse nego porco. O diabo do nego sujo. — Entendeu bem, João? Você precisa ir. Nada não assine. Repuxa no pescocinho o enorme lenço encarnado. — O doutorzinho é meu pai. — Só faça trato de boca. — Os três barracos são meus. O hominho que ganhou. Foi o hominho que trabalhou. — Metade é do hominho. E metade da Maria. — Não se fie, doutor. Essa é uma traidora: De que lado o doutor está? — Vá para casa, João. Dormir na cama. O gigante dos colibris ergue-se no salto da botinha. . — Acuda o hominho. Pende para cá e para lá, upa, abraçado na palmeira. — Não vai longe esse hominho.

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