sábado, 31 de março de 2012

A mulher nua Sérgio Sant'Anna

É no aposento também nu, absolutamente nu, postada próxima ao ângulo formado por duas paredes pintadas de verde, uma recebendo mais claridade do que a outra, e pisando o chão liso, neutro, de um bege esverdeado, que a mulher nua, ao fundo - um falso fundo, porque não distante de nós — se oferece ao nosso olhar. o fato de a mulher estar calçada com sapatos cor-de-rosa, de salto alto, e segurar pela alça, com a mão direita, uma bolsa da mesma cor não a deixa menos nua, pelo contrário. Mas tornaremos a isso mais tarde. Antes, é preciso apontar que, para a completa nudez da mulher nua, é indispensável que não haja mobiliário ou objetos que dispersem a nossa atenção pelo aposento. Mas dizer que ela se encontra em um aposento, já não terá sido cair num ardil?Pois o espaço que a circunscreve se reduz aos elementos mais primários, primordiais; a três planos pintados — não há nem mesmo um plano para o teto — que se limitam reciprocamente, criando um espaço,uma perspectiva,um cenário impecavelmente despido,para que a mulher nua se exponha ao nosso olhar, capture-o — na verdade, somos trazidos para dentro da peça — sob uma luz feita de tintas que não se ostentam; luz que é toda para a mulher nua e que emana também dela própria, de seu corpo branco, regado, pigmentado, com o rubor da vida que estará circulando em seu interior e irrompe nos bicos dos seios, os quais, juntamente com o que se abriga sob os pêlos castanho-negros entre as pernas, são como que as verdadeiras e puras fontes dessa mulher. Um atributo notável da mulher nua é que, apesar de sua prisão solitária na tela, ela nunca se encontra sozinha, eis que sempre nos olha, nos encara fixamente quando a olhamos. Jamais poderemos ser voyeurs secretos,ela sempre nos observará, nos penetrará agudamente, revelando-nos como funciona o nosso desejo e, portanto, quem somos, e isso valerá tanto para homens quanto para mulheres. Sua presença é muito diversa daquela de nus pintados por pintores oniscientes da solidão, como Edward Hopper, em seus, por exemplo, Eleven A. M. (1926) e Moming in a City (1944),em que mulheres nuas, sozinhas em seus quartos, completamente distraídas de seus corpos, vistos de perfil e já marcados pelo tempo, contemplam pedaços de cidades lá fora, nesgas de edifícios,tão desolados quanto elas, as mulheres nos quadros. E se falamos em onisciência é porque o pintor, em princípio, não poderia estar no espaço delas, nem vê-las. Então é bem como no cinema, quando se oculta a técnica que nos propicia estar ali, no convívio dos personagens. O cinema, que não escapou a Hopper em NewYork Movie (1939):de um lado, a sala de projeção, com seus escassos espectadores que se perdem no que se passa na tela; do lado de fora, no estreito saguão, a moça de uniforme, a lanterninha, com a mão no rosto, profundamente absorvida em seus pensamentos — ah, a eterna prisão dos pensamentos —, e quase não resistimos a ler na expressão da moça, sendo ela tão jovem, a tristeza de algum amor desfeito, ou distante: uma saudade. Falecido em 1967, Hopper se torna cada vez mais popular, em reproduções nas paredes de lojas, consultórios, capas de livro, lanchonetes e lares, expressando os sentimentos de solidão que todos identificam: perfeitos e poéticos lugares-comuns. Já esta mulher nua é, para mim, e suponho que para outros — e por motivos que irão se revelando —, única. Não tem nada a ver, também, com os nus de ateliê e com os pintores que revelam, de algum modo, numa obra, sua relação ou atração pela modelo, como Goya e sua La Maja desnuda (1800/3) ,sem negar o que ela tem de enigmático no olhar que concede ao pintor pintando-a, o qual, conclui-se, a deseja e é desejado, ainda que a modelo possa retirar seu maior prazer e excitação desse olhar de homem que a acaricia e eterniza jovem, bela e nua. E, pelo menos a mim, me parece que Goya fixou o olhar da modelo (esqueçamo-nos de fofocas da corte, que a deram como a duquesa de Alba, disfarçada) quando ela mirava a si própria, no quadro já esboçado. E não terá se alimentado uma relação amorosa, ou simplesmente carnal, tanto para ele como para ela, primordialmente dessa representação? De todo modo, o olhar da Maja, como Goya o pintou, também atravessa o pintor para dirigir-se a todos os que a contemplariam pelos séculos afora, mas ficará para sempre flagrante a pose de ateliê, a conjunção pintor-modelo, o primeiro absolutamente explícito na pose da segunda,o que torna La Maja desnuda, em corpo e espírito, tão distante de nossa mulherzinha nua. Antes de voltarmos a ela, não custa apontar que um nu tão radical, tão feroz em sua conversão extremada da mulher a signos de pura sexualidade e pura pintura,como Nude in an Armchair (1929),de Pablo Picasso,essa obra-prima e triunfo implacável do moderno, foi também pintura de ateliê (e se não foi, foi feita como se fosse), ambientada, é claro, num estúdio falsificado, com acréscimos e citações, de Matisse a Malevitch, intrometidos na cena pela imaginação requintada e rigorosa, pelo espírito lúdico, pela lucidez e pelo gênio de Picasso. Mas é difícil crer que uma mulher de carne e osso não se sentou ali na poltrona vermelha para que o pintor a devassasse inteiramente, a desconstruísse e reconstruísse, a fodesse de todos os modos, numa explosão de porra também pictórica. Voltando à nossa mulherzinha — tão valorosa, entre outras coisas, porque a sujeitamos a comparações duríssimas -, uma de suas maiores diferenças não estaria no fato de ter sido pintada por uma mulher? Em parte sim, mas não apenas por isso, pois nada impede que haja pintoras que estabeleçam, com maior ou menor envolvimento e afeição, uma relação íntima com suas modelos, que podem ser até elas próprias, como nos film-stills da norte-americana Cindy Sherman, criando personagens para si — e que não deixam de ser ela mesma — em flagrantes de atuações dramáticas, que até precisam que outro, sem se tornar o artista, empunhe a câmera sob a direção de Cindy, artista exemplar da nossa contemporaneidade, da passagem do século vinte para o século vinte e um. Para Cindy, tornam-se essencialíssimos, embora sem ostentação, os figurinos, enquanto o figurino de nossa mulher nua, apesar dos adereços cor-de-rosa, é sua própria nudez, pois se trata de uma nudez criada, realçada, e algo certamente fundamental é que foi pintada sem a utilização de nenhuma modelo, o que não terá impedido que a artista passasse a amar sua criatura. Mas se trata, esta criatura, da materialização de uma subjetividade ultrafigurativa, e logo trataremos disso, que é uma diferença muito importante. Antes, quero voltar ao aparente paradoxo de a mulher estar sempre sozinha e sempre conosco. Talvez se possa ir mais longe para dizer que essa mulher, mesmo que o quadro seja relegado aos porões, estará sempre à nossa espreita, desde que foi aprisionada, em 1999, em seu pequeno mas elástico espaço de 43 X 31 cm. E tão logo abrirmos a página do livro, ou do catálogo da exposição em que estiver reproduzida, ou, ainda, passarmos entre os quadros dessa exposição, não apenas seremos fatalmente atraídos para ela, como teremos a sensação de que ela já nos olhava, até mesmo pelas costas, desafiando-nos a decifrá-la e, por que não?, desejá-la, mas de um modo especial, singular, inclusive porque existe algo de artisticamente traiçoeiro, suspeito, nessa pintura tão inesperada, nessa mulher que nos enreda em sua nudez. E há um naturalismo deliberado nessa obra, que a arremessa ao limite do artístico, ela não pertence a nenhuma escola ou contemporaneidade codificada, eis um de seus inegáveis atrativos. Ah, uma reles sedutora, poderão dizer, tanto da artista como da personagem, com seus truques até baratos e vulgares, como esse de usar sapatos e bolsa cor-de-rosa — uma cor fútil —, os quais, pela razão e poder dos fetiches, nos permitem um acesso maior à sua nudez, têm uma relação indiscutível e inexplicavelmente íntima com os biquinhos de seus seios e sua xoxota escondida sob os pêlos, como se fosse uma profissional num cenário e sob uma iluminação espertos, dotando aquele corpo de uma auréola suculenta de pecado, fazendo com que ele pareça até tangível, ali naquele falso fundo de um falso aposento. Mas o que dizer da postura estática e algo tensa da mulher nua, ao mesmo tempo defensiva e provocadora? De seus olhos arregalados, vítreos, fixos, simultaneamente amedrontados e desafiadores? De tudo o que revelam de timidez e arrojo simultâneos, uma coisa tendo a ver com a outra? E pode-se perguntar se uma mulher não se torna tímida, entre outras coisas, para conter o que, do contrário, poderia levá-la a ultrapassar os limites mais loucos e inconcebíveis, fronteiras sobre as quais a pintora talvez haja passeado o tempo todo, à medida que ia se definindo o quadro, e que estão refletidas nele. Esse quadro a respeito do qual "o outro" — no caso agora eu — poderá dizer o que quiser. E aqui é chegada a hora de ir ao ponto principal: com seu corpo rechonchudinho, apesar de firme — inegavelmente gostosa —, a mulher nua em nada se assemelha a uma atriz ou modelo, ou a qualquer outro tipo de profissional que posasse nua, conhecedora de todos os truques do métier. Ao contrário, e por isso a chamamos de mulherzinha, sem nenhum menosprezo, é a mulher comum - por exemplo, uma dona-de-casa - que de repente se revestisse, ainda que se despindo, de suas e nossas fantasias e caprichos, como a da puta que fosse pura, amadora, Belle de jour, como Catherine Deneuve angelical no filme de Buñuel, e isso talvez explique por que nos sentimos tão fascinados por ela, a desejamos tanto, e tento eu cingi-Ia com palavras que me façam possuí-la para sempre, aqui, neste estágio do desejo antes de sua satisfação, o que mantém esse desejo permanentemente aceso. Poderá ela também despertar o desejo adormecido, talvez mesmo desconhecido, de outras mulheres; em algumas para, verdadeiramente, quererem tê-la nos braços; noutras, o desejo que já terão sentido algum dia, com o coração batendo, de se mostrarem assim, tão nuas, aos olhares de todos, nem que para isso tivessem de idealizar um outro corpo para si, mas que é parente do seu e semelhante a ele. Mas se foi a pintora, é certo, que projetou, conscientemente ou não, uma imagem e idéia de seu corpo na tela, não fez como a grande e autoconsciente artista plástica que se maquiasse, sofisticada, para o grande salão. Com um requinte bruto, ela se pintou com a fantasia da mulher comum, a mulherzinha, repetimos, que também é — e penso nela, com um vestido caseiro, fritando um ovo —, que cedesse à sua audácia mais escondida. E eis que esse quadro nos dá uma sensação tão grande de intimidade, de penetração nos segredos femininos, nos segredos da artista, que nos exibe seus devaneios sensuais. Porém, não há a promiscuidade da mais leve pornografia (ou será que há, talvez sutil?), nem a falsa naturalidade do deitar-se, ou do banho, ou das carícias no próprio corpo, da languidez feminina tão cara a certos pintores homens de outra época. Antes de tudo, a artista, a mulher nua, sem nenhuma modelo, pintou e pintou-se para si própria. Mas nessa sua intimidade que nos inclui, pelo olhar que trocamos, a mulher nua parece estar a nos dizer que nos deixaria tocar e gozar de seu corpo, de suas puras fontes femininas, se nos fosse possível dar dois ou três passos no aposento em que estamos junto com ela. No entanto, só o poderemos fazer com a visão, mas há, aqui, na carnalidade desse quadro, uma visão tátil, ouso dizer, que nos torna, de algum modo, possuidores do corpo da mulher nua, embora todo movimento fosse fatal para a sua estática e elegante sensualidade. Altiva, solitária, misteriosa, ela então se dá a cada um de nós desse modo, e poderemos ter esse sentimento tão raro diante de uma mulher pintada, que é o de não só desejá-la, como também amá-la perdidamente. (A mulher nua é a figurante de um quadro sem título de Cristina Salgado, pintado em 1999.)

quinta-feira, 29 de março de 2012

Poemeu - A superstição é imortal Millôr Fernandes

Quando eu era bem menino Tinha fadas no jardim No porão um monstro albino E uma bruxa bem ruim. Cada lâmpada tinha um gênio Que virava ano em milênio E, coisa bem mais perversa, Sapo em rei e vice-versa. Tinha Ciclope,Centauro, Autósito, Hidra e megera, Fênix, Grifo, Minotauro, Magia, pasmo e quimera. Mas aí surgiram no horizonte Além de Custer e seus confederados A tecnologia mastodonte Com tecnologistas bem safados Esses homens da ciência me provaram Que duendes, bruxas e omacéfalos Eram produtos imbecis de meu encéfalo. Nunca existiram e nunca existirão: uma decepção! Mas continuo inocente, acho. Ou burro, bobo, ou borracho. Pois toda noite eu vejo todo dia Tudo que é estranho, raro, ou anomalia: Padres sibilas Hidras estruturalistas Ministros gorilas Avis raras feministas Políticos de duas cabeças Unicórnios marxistas Antropólogas travessas Mactocerontes psicanalistas Cisnes pretos arquitetos Economistas sereias Democratas por decreto E beldades feias Que invadem a minha caverna E me matam de aflição Saindo da lanterna Da televisão.

segunda-feira, 26 de março de 2012

Antes que o poeta fizesse oitenta anos João Antônio

E como estou em Passo Fundo e minha volta inclui uma passagem por Porto Alegre, aproveito para lhe fazer uma visita antes que ele faça oitenta anos. O poeta ainda anda. Vai bengalando, apesar do atropelamento que sofreu e que preocupou algumas gentes de alguns lados da cidade. Lúcido, meio doente, uma secretária por perto. Sempre. Que secretária, que nada... é parenta ou amiga de parenta. Mora, todos sabem, por um favorecimento de um jogador de futebol, vitorioso aqui no país e lá na Itália. Tanto que, tornou-se técnico do nosso selecionado. Camões comeu de amigos; ele mora de um amigo no apartamento 204, do Hotel Royal, da Rua Marechal Floriano, em Porto Alegre. Porto, vá lá. Mas alegre, por quê? Um de seus amigos, Erico Verissimo, disse que ele era "anjo disfarçado de homem". Seria possível concordar, não tivesse o poeta ao lado de um lirismo espontâneo uma veia de espírito irreverente, irônico, irrequieto que me fez lembrar uma frase tão carioca em torno da capital do Rio Grande do Sul. — A cidade cresceu e ficou confusa. Eu já não sei mais andar em Porto Alegre. Já não tem a ironia do homem que há uns dez anos me ofereceu uma água mineral na Rua da Praia, dizendo que de alguma forma era necessário confirmar que o homem da terra era hospitaleiro. Mas eu que tomasse cuidado ao me sentar naquele puleiro. O puleiro era o tamborete do bar. Agora ele é uma vela se extinguindo, passarinho cansado e não tem jeito. Ganhou cabelos brancos; não ganhou juízo. Vai bebendo muito café e fumando, desobediente ao médico, no apartamentinho com seus retratos, livros, recordações, bagunça. Tem um espelho como o de algumas cortesãs antigas e lá em cima da cabeceira da cama um poster de Greta Garbo, em que ela abusa de seus mistérios em preto-e-branco. A Garbo que foi dele e de toda a sua geração, um dia, rapazes e, claro, brasileiros e sonhadores. Ela é bela fora de conta até no poster. Há mulheres infinitas. As de Machado de Assis, as de Robert Musil e há aquelas em que, além da beleza, carregam uma enciclopédia de vida na cara. Saímos. Tocamos de carro à Praça da Alfândega e olhando para os lados de onde foi o Correio do Povo, lembrei que ele fez durante 31 anos o seu Caderno H. O poeta me olhou fingindo seriedade: — Puxa, como o tempo passa! Vai ver que é por isso que eu já tenho quase oitenta anos. Deu para um chuvisco repentino no sábado. A secretária, alerta, ralhou: — Saia da chuva, Mário! Tenta uma ironia, teimosa: — Por quê? Ele mesmo responde: — Porque chuva faz mal aos passarinhos. Como lhe dou trela, ele expande uma qualidade acima de todas. Jamais aborrece quem o ouve. Gosta bem, falando claro, que o pajeiem até a praça da Alfândega, a famosa, que tem lá uma homenagem, o seu poema em bronze numa placa. Depois que publicou, com sucesso de público, livros infantis, demonstra apreciar a popularidade. Não se casou; as crianças o alegram. Confessa-me a certa altura, que se esforça para ter de novo uma ótica infantil. Conseguir, é raro; conseguindo, vibra. Nos mais recentes dez anos, tem aceitado ir a debates. E num desses, mulheres perguntaram porque não se casou. Afinal, levou fama de boa pinta na mocidade. — Porque as mulheres são muito perguntadoras. Perduráveis, alguns versos desse homem. Olhando para ele, quase oitentão, neste sábado, fico pensando. É um poeta. Momentos de peso pesado: Da primeira vez que me assassinaram Perdi um jeito de sorrir que eu tinha... Depois, de cada vez que me mataram, Foram levando qualquer coisa minha... Fez um nomaço nacional sem ter saído do Rio Grande; provincianismo teria sido sair do seu Estado. Logo, rebate: — Sou gaúcho mas não sou fanático. Sou contra o gaúcho de fantasia. Teme que vá, que vá me parecer cretino. Mas a poesia de Baudelaire força a barra. O poeta francês fala um tom acima de sua voz. É infantil a sua aflição com Satã e o satanismo. O diabo já ficou chato; afinal, é uma figura da Idade Média. Ele é mais Apolinaire. E Lorca — que pronuncia com a primeira vocal fechada. Se lhe dou canja, ele deságua em frases inteligentes, fortes e de humor. Não confia na inspiração. Não basta esperar que o santo baixe. É preciso puxar o santo pela perna. A criança é o pai do homem. Não foi Aristóteles quem disse? Pois eu estou procurando ser criança outra vez. Afinal, tenho escrito para elas. Não me sinto bem fazendo poesia social. Por que a poesia social de Castro Alves é boa? Ora, ele tinha gênio. Nós só temos talento. Nunca conseguiu trabalhar todos os dias. Olavo Bilac trabalhava todos os dias. Das dez da manhã ao meio-dia: — E bebendo leite, que barbaridade! Vou deixá-lo, de volta. No hotel da Rua Marechal Floriano, vai bengalar até a porta do elevador. Sorrirá antes da despedida. Que eu conte a seus inimigos, ele está fazendo sucesso. Não conheço nenhum inimigo do poeta e tenho andado por este país. Faz aqueles olhos claros que sorriem detrás dos óculos e parecem armar uma marotagem qualquer. Mário Quintana, com malícia, me segreda: — Se eu não me gabo, quem é que vai me elogiar?

sábado, 24 de março de 2012

I love my husband Nélida Piñon

Eu amo meu marido. De manhã à noite. Mal acordo, ofereço-lhe café. Ele suspira exausto da noite sempre maldormida e começa a barbear-se. Bato-lhe à porta três vezes, antes que o café esfrie. Ele grunhe com raiva e eu vocifero com aflição. Não quero meu esforço confundido com um líquido frio que ele tragará como me traga duas vezes por semana, especialmente no sábado. Depois, arrumo-lhe o nó da gravata e ele protesta por consertar-lhe unicamente a parte menor de sua vida. Rio para que ele saia mais tranqüilo, capaz de enfrentar a vida lá fora e trazer de volta para a sala de visita um pão sempre quentinho e farto. Ele diz que sou exigente, fico em casa lavando a louça, fazendo compras, e por cima reclamo da vida. Enquanto ele constrói o seu mundo com pequenos tijolos, e ainda que alguns destes muros venham ao chão, os amigos o cumprimentam pelo esforço de criar olarias de barro, todas sólidas e visíveis. A mim também me saúdam por alimentar um homem que sonha com casas-grandes, senzalas e mocambos, e assim faz o país progredir. E é por isto que sou a sombra do homem que todos dizem eu amar. Deixo que o sol entre pela casa, para dourar os objetos comprados com esforço comum. Embora ele não me cumprimente pelos objetos fluorescentes. Ao contrário, através da certeza do meu amor, proclama que não faço outra coisa senão consumir o dinheiro que ele arrecada no verão. Eu peço então que compreenda minha nostalgia por uma terra antigamente trabalhada pela mulher, ele franze o rosto como se eu lhe estivesse propondo uma teoria que envergonha a família e a escritura definitiva do nosso apartamento. O que mais quer, mulher, não lhe basta termos casado em comunhão de bens? E dizendo que eu era parte do seu futuro, que só ele porém tinha o direito de construir, percebi que a generosidade do homem habilitava-me a ser apenas dona de um passado com regras ditadas no convívio comum. Comecei a ambicionar que maravilha não seria viver apenas no passado, antes que este tempo pretérito nos tenha sido ditado pelo homem que dizemos amar. Ele aplaudiu o meu projeto. Dentro de casa, no forno que era o lar, seria fácil alimentar o passado com ervas e mingau de aveia, para que ele, tranqüilo, gerisse o futuro. Decididamente, não podia ele preocupar-se com a matriz do meu ventre, que devia pertencer-lhe de modo a não precisar cheirar o meu sexo para descobrir quem mais, além dele, ali estivera, batera-lhe à porta, arranhara suas paredes com inscrições e datas. Filho meu tem que ser só meu, confessou aos amigos no sábado do mês que recebíamos. E mulher tem que ser só minha e nem mesmo dela. A idéia de que eu não podia pertencer-me, tocar no meu sexo para expurgar-lhe os excessos, provocou-me o primeiro sobressalto na fantasia do passado em que até então estivera imersa. Então o homem, além de me haver naufragado no passado, quando se sentia livre para viver a vida a que ele apenas tinha acesso, precisava também atar minhas mãos, para minhas mãos não sentirem a doçura da própria pele, pois talvez esta doçura me ditasse em voz baixa que havia outras peles igualmente doces e privadas, cobertas de pêlo felpudo, e com a ajuda da língua podia lamber-se o seu sal? Olhei meus dedos revoltada com as unhas longas pintadas de roxo. Unhas de tigre que reforçavam a minha identidade, grunhiam quanto à verdade do meu sexo. Alisei meu corpo, pensei, acaso sou mulher unicamente pelas garras longas e por revesti-las de ouro, prata, o ímpeto do sangue de um animal abatido no bosque? Ou porque o homem adorna-me de modo a que quando tire estas tintas de guerreira do rosto surpreende-se com uma face que Ihe é estranha, que ele cobriu de mistério para não me ter inteira? De repente, o espelho pareceu-me o símbolo de uma derrota que o homem trazia para casa e tornava-me bonita. Não é verdade que te amo, marido? perguntei-lhe enquanto lia os jornais, para instruir-se, e eu varria as letras de imprensa cuspidas no chão logo após ele assimilar a notícia. Pediu, deixe-me progredir, mulher. Como quer que eu fale de amor quando se discutem as alternativas econômicas de um país em que os homens para sustentarem as mulheres precisam desdobrar um trabalho de escravo. Eu lhe disse então, se não quer discutir o amor, que afinal bem pode estar longe daqui, ou atrás dos móveis para onde às vezes escondo a poeira depois de varrer a casa, que tal se após tantos anos eu mencionasse o futuro como se fosse uma sobremesa? Ele deixou o jornal de lado, insistiu que eu repetisse. Falei na palavra futuro com cautela, não queria feri-lo, mas já não mais desistia de uma aventura africana recém-iniciada naquele momento. Seguida por um cortejo untado de suor e ansiedade, eu abatia os javalis, mergulhava meus caninos nas suas jugulares aquecidas, enquanto Clark Gable, atraído pelo meu cheiro e do animal em convulsão, ia pedindo de joelhos o meu amor. Sôfrega pelo esforço, eu sorvia água do rio, quem sabe em busca da febre que estava em minhas entranhas e eu não sabia como despertar. A pele ardente, o delírio, e as palavras que manchavam os meus lábios pela primeira vez, eu ruborizada de prazer e pudor, enquanto o pajé salvava-me a vida com seu ritual e seus pêlos fartos no peito. Com a saúde nos dedos, da minha boca parecia sair o sopro da vida e eu deixava então o Clark Gable amarrado numa árvore, lentamente comido pelas formigas. Imitando a Nayoka, eu descia o rio que quase me assaltara as forças, evitando as quedas d'água, aos gritos proclamando liberdade, a mais antiga e miríade das heranças. O marido, com a palavra futuro a boiar-lhe nos olhos e o jornal caído no chão, pedia-me, o que significa este repúdio a um ninho de amor, segurança, tranqüilidade, enfim a nossa maravilhosa paz conjugal? E acha você, marido, que a paz conjugal se deixa amarrar com os fios tecidos pelo anzol, só porque mencionei esta palavra que te entristece, tanto que você começa a chorar discreto, porque o teu orgulho não lhe permite o pranto convulso, este sim, reservado à minha condição de mulher? Ah, marido, se tal palavra tem a descarga de te cegar, sacrifico-me outra vez para não vê-lo sofrer. Será que apagando o futuro agora ainda há tempo de salvar-te? Suas crateras brilhantes sorveram depressa as lágrimas, tragou a fumaça do cigarro com volúpia e retomou a leitura. Dificilmente se encontraria homem como ele no nosso edifício de dezoito andares e três portarias. Nas reuniões de condomínio, a que estive presente, era ele o único a superar os obstáculos e perdoar aos que o haviam magoado. Recriminei meu egoísmo, ter assim perturbado a noite de quem merecia recuperar-se para a jornada seguinte. Para esconder minha vergonha, trouxe-lhe café fresco e bolo de chocolate. Ele aceitou que eu me redimisse. Falou-me das despesas mensais. Do balanço da firma ligeiramente descompensado, havia que cuidar dos gastos. Se contasse com a minha colaboração, dispensaria o sócio em menos de um ano. Senti-me feliz em participar de um ato que nos faria progredir em doze meses. Sem o meu empenho, jamais ele teria sonhado tão alto. Encarregava-me eu à distância da sua capacidade de sonhar. Cada sonho do meu marido era mantido por mim. E, por tal direito, eu pagava a vida com cheque que não se poderia contabilizar. Ele não precisava agradecer. De tal modo atingira a perfeição dos sentimentos, que lhe bastava continuar em minha companhia para querer significar que me amava, eu era o mais delicado fruto da terra, uma árvore no centro do terreno de nossa sala, ele subia na árvore, ganhava-lhe os frutos, acariciava a casca, podando seus excessos. Durante uma semana bati-lhe à porta do banheiro com apenas um toque matutino. Disposta a fazer-lhe novo café, se o primeiro esfriasse, se esquecido ficasse a olhar-se no espelho com a mesma vaidade que me foi instilada desde a infância, logo que se confirmou no nascimento tratar-se de mais uma mulher. Ser mulher é perder-se no tempo, foi a regra de minha mãe. Queria dizer, quem mais vence o tempo que a condição feminina? O pai a aplaudia completando, o tempo não é o envelhecimento da mulher, mas sim o seu mistério jamais revelado ao mundo. Já viu, filha, que coisa mais bonita, uma vida nunca revelada, que ninguém colheu senão o marido, o pai dos seus filhos? Os ensinamentos paternos sempre foram graves, ele dava brilho de prata à palavra envelhecimento. Vinha-me a certeza de que ao não se cumprir a história da mulher, não lhe sendo permitida a sua própria biografia, era-lhe assegurada em troca a juventude. Só envelhece quem vive, disse o pai no dia do meu casamento. E porque viverás a vida do teu marido, nós te garantimos, através deste ato, que serás jovem para sempre. Eu não sabia como contornar o júbilo que me envolvia com o peso de um escudo, e ir ao seu coração, surpreender-lhe a limpidez. Ou agradecer-lhe um estado que eu não ambicionara antes, por distração talvez. E todo este troféu logo na noite em que ia converter-me em mulher. Pois até então sussurravam-me que eu era uma bela expectativa. Diferente do irmão que já na pia batismal cravaram-lhe o glorioso estigma de homem, antes de ter dormido com mulher. Sempre me disseram que a alma da mulher surgia unicamente no leito, ungido seu sexo pelo homem. Antes dele a mãe insinuou que o nosso sexo mais parecia uma ostra nutrida de água salgada, e por isso vago e escorregadio, longe da realidade cativa da terra. A mãe gostava de poesia, suas imagens sempre frescas e quentes. Meu coração ardia na noite do casamento. Eu ansiava pelo corpo novo que me haviam prometido, abandonar a casca que me revestira no cotidiano acomodado. As mãos do marido me modelariam até os meus últimos dias e como agradecer-lhe tal generosidade? Por isso talvez sejamos tão felizes como podem ser duas criaturas em que uma delas é a única a transportar para o lar alimento, esperança, a fé, a história de uma família. Ele é único a trazer-me a vida, ainda que às vezes eu a viva com uma semana de atraso. O que não faz diferença. Levo até vantagens, porque ele sempre a trouxe traduzida. Não preciso interpretar os fatos, incorrer em erros, apelar para as palavras inquietantes que terminam por amordaçar a liberdade. As palavras do homem são aquelas de que deverei precisar ao longo da vida. Não tenho que assimilar um vocabulário incompatível com o meu destino, capaz de arruinar meu casamento. Assim fui aprendendo que a minha consciência que está a serviço da minha felicidade ao mesmo tempo está a serviço do meu marido. É seu encargo podar meus excessos, a natureza dotou-me com o desejo de naufragar às vezes, ir ao fundo do mar em busca das esponjas. E para que me serviriam elas senão para absorver meus sonhos, multiplicá-los no silêncio borbulhante dos seus labirintos cheios de água do mar? Quero um sonho que se alcance com a luva forte e que se transforme algumas vezes numa torta de chocolate, para ele comer com os olhos brilhantes, e sorriremos juntos. Ah, quando me sinto guerreira, prestes a tomar das armas e ganhar um rosto que não é o meu, mergulho numa exaltação dourada, caminho pelas ruas sem endereço, como se a partir de mim, e através do meu esforço, eu devesse conquistar outra pátria, nova língua, um corpo que sugasse a vida sem medo e pudor. E tudo me treme dentro, olho os que passam com um apetite de que não me envergonharei mais tarde. Felizmente, é uma sensação fugaz, logo busco o socorro das calçadas familiares, nelas a minha vida está estampada. As vitrines, os objetos, os seres amigos, tudo enfim orgulho da minha casa. Estes meus atos de pássaro são bem indignos, feririam a honra do meu marido. Contrita, peço-lhe desculpas em pensamento, prometo-lhe esquivar-me de tais tentações. Ele parece perdoar-me à distância, aplaude minha submissão ao cotidiano feliz, que nos obriga a prosperar a cada ano. Confesso que esta ânsia me envergonha, não sei como abrandá-la. Não a menciono senão para mim mesma. Nem os votos conjugais impedem que em escassos minutos eu naufrague no sonho. Estes votos que ruborizam o corpo mas não marcaram minha vida de modo a que eu possa indicar as rugas que me vieram através do seu arrebato. Nunca mencionei ao marido estes galopes perigosos e breves. Ele não suportaria o peso dessa confissão. Ou que lhe dissesse que nessas tardes penso em trabalhar fora, pagar as miudezas com meu próprio dinheiro. Claro que estes desatinos me colhem justamente pelo tempo que me sobra. Sou uma princesa da casa, ele me disse algumas vezes e com razão. Nada pois deve afastar-me da felicidade em que estou para sempre mergulhada. Não posso reclamar. Todos os dias o marido contraria a versão do espelho. Olho-me ali e ele exige que eu me enxergue errado. Não sou em verdade as sombras, as rugas com que me vejo. Como o pai, também ele responde pela minha eterna juventude. É gentil de sentimentos. Jamais comemorou ruidosamente meu aniversário, para eu esquecer de contabilizar os anos. Ele pensa que não percebo. Mas, a verdade é que no fim do dia já não sei quantos anos tenho. E também evita falar do meu corpo, que se alargou com os anos, já não visto os modelos de antes. Tenho os vestidos guardados no armário, para serem discretamente apreciados. Às sete da noite, todos os dias, ele abre a porta sabendo que do outro lado estou à sua espera. E quando a televisão exibe uns corpos em floração, mergulha a cara no jornal, no mundo só nós existimos. Sou grata pelo esforço que faz em amar-me. Empenho-me em agradá-lo, ainda que sem vontade às vezes, ou me perturbe algum rosto estranho, que não é o dele, de um desconhecido sim, cuja imagem nunca mais quero rever. Sinto então a boca seca, seca por um cotidiano que confirma o gosto do pão comido às vésperas, e que me alimentará amanhã também. Um pão que ele e eu comemos há tantos anos sem reclamar, ungidos pelo amor, atados pela cerimônia de um casamento que nos declarou marido e mulher. Ah, sim, eu amo meu marido.

sexta-feira, 23 de março de 2012

Camarão no jantar Sônia Coutinho

Chove há dois dias. A mulher sozinha trancada em seu apartamento. Está muito úmido. Acordou com o corpo todo doendo. E teve a deprimente idéia de que era reumatismo. Depois do café da manhã, achou que era preciso mudar tudo. Como? Ah, sim, grande idéia. Na verdade, repetida ao longo de anos, a mesma idéia: tentar reativar um grande amor, que permanece em banho-maria. Morno mas ainda aquecido. E na história desse amor há um jantar que o Homem Amado nunca esqueceu. Deve fazer vinte anos, mas ele sempre fala daquele bobó de camarão preparado por ela. Antes, houve uma série de tentativas de sua mãe, de lhe ensinar a cozinhar. Sempre se recusou a aprender, achava careta. Rogério, o único homem que conseguiu, em toda a vida dela, levá-la para a cozinha. Decide ligar para ele, agora. Decorou desde o início o número do telefone do escritório de Rogério. (Um dia, lembra, disse a ele: "Se esse número, alguma vez, deixar de atender, enlouqueço. Vou ter de mudar de vida. Ou de cidade, de país, quem sabe.") Já o telefone da casa dele, Rogério sempre deu um jeito de nunca lhe informar. Muito menos, claro, de levá-la lá. A história era horrorosa: ele era casado desde quando se conheceram, e sempre disse o contrário. Mas veio a descoberta. Ela estava em New Orleans — sua primeira viagem aos Estados Unidos, num grupo de turismo quando ligou para aquele eterno número do escritório de Rogério e ouviu a seguinte resposta de um dos dois outros advogados associados: "Ele saiu, foi levar ao médico a esposa dele, que está grávida." Um dia inteiro ouvindo jazz em Bourbon Street e chorando. Até então tinha sido enganada — ou se enganara, voluntariamente, em dois anos de relacionamento tórrido (de sua parte). Liga agora para Rogério, atende um desconhecido (os dois outros advogados do escritório mudaram) e vai chamá-lo. Que voz a dele, maravilhosa. E sua eterna gentileza. Depois de uma rápida troca de palavras, ela convida: — Venha jantar aqui, na próxima sexta-feira. Desta vez, será bobó de camarão, prometo. — Que maravilha! Vou sim, sem falta – responde. Mas sempre se mostra entusiasmado, promete ir — e fica apenas na promessa. Nunca — ou raramente aparece. Ora, corta essa de maus pensamentos, ordena a si mesma, ao desligar o telefone. Deita-se no sofá e avalia o convite que acabou de fazer. Foi num impulso. Talvez não devesse. Mas há a chuva, seu quase desespero. Tudo bem, fará o bobó. Está de férias, pode enfrentar a trabalheira. Até agora, vem convidando Rogério, com escassos resultados, para vários outros tipos de refeição. Agora, usa seu maior trunfo. Para daqui a uma semana. Assim, até dá tempo para todos os preparativos: limpar a casa, ver se está lavada sua única toalha de mesa realmente festiva (é linda), providenciar as bebidas. E ir logo comprando todos os ingredientes do bobó. Menos, claro, o camarão, que fica para a véspera. É um prato que se precisa começar a fazer no dia anterior, não dá para aprontar tudo no mesmo dia. Enquanto isso, cabe uma boa faxina no apartamento, escolher as flores que colocará nos jarros. E no que fará para criar um "clima". (Decide deixar apenas alguns abajures acesos, em pontos estratégicos.) Pensa agora no próprio Rogério, na sedução dele. Também engordou, como ela. Mas tem uma espécie de doçura que o torna lindo. Seus dedos... Aqueles dedos grandes. Um encanto irresistível que vem.,. sabe ela de onde! Um homem fechado, misterioso, Esconde o jogo. Enquanto durou o caso de amor deles, Rogério a fez de gato e sapato, depois vinha sempre seu perdão. Primeiro, tem de reler a receita do bobó, que não prepara há tanto tempo, ver se ainda sabe os truques. Depois fará uma lista de ingredientes. É bom lembrar que o mercado de frutas e verduras fecha na segunda-feira. Além de ser o único homem para quem gostou de cozinhar, em toda sua vida, Rogério é também o único que lhe inspirou amor à primeira vista. Coisa em que não acreditava, mas aconteceu. A paixão começou quando o viu sentado a uma escrivaninha do escritório dele (precisava de um advogado, alguém o recomendara), alto, todo grande, muito sério. A tarefa da vida dela seria amenizar aquela seriedade, só que ele não deixou. Recentemente, em conversa pelo telefone, Rogério dissera, rindo: "Você mudou minha vida..." Talvez porque soubesse que era o que ela mais esperaria ouvir, da parte dele. Um homem bem vestido e tratado como nunca tivera igual. Ela, que sempre fez um gênero "alternativo", ela que usava bolsas indianas, colares artesanais, ela que anda sempre com sujeitos mais para artistas, "papo-cabeça". E agora Rogério, nada menos. Ele seria, com certeza, a grande aspiração de mulheres de outro tipo. Para ela, significava entrar no comum. Todas gostam de flores, mas ela nunca pensara nisso a fundo. Até que, um dia, começou a achar uma orquídea a coisa mais linda do mundo. Sua paixão por Rogério ficava nessa clave. O curioso era ela, afinal, amar com tanta intensidade um homem assim. Tirou muitas fotos dele, admirando seu perfil grego. Um amor para ela irracional, como não acreditava que pudesse acontecer-lhe. Porque havia um detalhe: Rogério era dez anos mais novo. O que dava àquele relacionamento o indispensável caráter de impossibilidade. Era um amour fou, apesar de tudo. Chove, chove ainda. Dá um pulo do sofá, vai tomar um banho quente. E revê mentalmente, sob o chuveiro, todos os dados acumulados, ao longo dos anos, sobre aquele homem mistério. Primeiro, meses de paixão e cama. Depois, a descoberta de que ele era casado, o que a fez romper dramaticamente o relacionamento. Em seguida, um período de recaídas, relações intermitentes. Sim, admitia que gostava de prolongar as coisas, não sabia nunca pôr um ponto final, quando algo, um dia, tinha sido agradável. Apegava-se interminavelmente a pessoas, situações. Acabou havendo, no caso do Rogério, a inevitável sublimação: uma amilié amoureuse. Alimentada por telefonemas profissionais seus, pois continuava a precisar de um advogado: as eternas questões em torno dos imóveis que sua mãe alugava. Mas quase todas as iniciativas eram suas. Para ela, mais sofrimento do que qualquer outra coisa, mas não sabia como se desprender daquilo. Aquela ânsia que às vezes sentia por Rogério. Era preciso controlar-se para não telefonar mais uma vez. Como se convencer, afinal, de que aquilo não renderia nada mais além, na melhor das hipóteses, de uma eterna amabilidade? Decide sair para almoçar fora, apesar da chuva. Está acostumada a sair sozinha, a entrar nos restaurantes sem olhar em torno. Hoje, para combater a deprê, irá a algum lugar onde nunca foi, um restaurante mais caro. Fica imaginando qual. *** E chega a noite do prometido jantar. Não quero descrever a angústia dessa mulher, na sala à meia-luz, enquanto o tempo passa e a comida esfria. Rogério está atrasado meia hora, mas ela ainda não sente inquietação. De vez em quando, vai até a cozinha dar uma olhada no bobó. Para acompanhar, há apenas arroz, uma refeição simplificada. Agora, Rogério está atrasado uma hora, mas ainda sente esperanças. Uma hora e meia de atraso, toda e qualquer possibilidade vai desaparecendo deste mundo. Ah, mas que história insuportável. Ah, meu Deus, que dor. Terrível, a dor dessa perda. Um amor que, no entanto, ela continua achando que não levou tão a sério quanto merecia. Por que teve aquela reação tão radical, quando soube que ele era casado? Por que não fez como todas as outras, foi levando? Como não percebeu na mesma hora que tinha de ser humilde, porque jamais esqueceria aquele amor? Um homem que, quem sabe — e isso alimenta sua dor —, ela talvez tivesse conquistado, no início, se fosse mais esperta. *** Mas há ainda um final. Que vem — ou começa a vir — quando ela descobre que Rogério estava tirando uma parte indevida do dinheiro dos aluguéis que sua mãe recebe. (No dia da descoberta, estava no escritório dele e entrou uma garota linda, com um casaco de couro preto... Sorria, sorria para Rogério.) Mesmo assim, dias depois, cheia de alguma estranha esperança de que nada disso seja verdadeiro, apenas um pesadelo, liga mais uma vez para o escritório dele. E o telefone toca, toca, ninguém atende, como sempre temeu que um dia fosse acontecer. Repete o telefonema nos dias seguintes — e nada. Descobre, afinal, através de um conhecido comum, que o escritório de Rogério faliu. Que há agora inúmeros processos contra ele, tido como trambiqueiro perigoso. E que ele fugiu, ninguém sabe para onde. No fundo, porém, ela continua achando que ele apenas se atrapalhou, cedeu a tentações. Meses se passam e ela ainda se surpreende eventualmente esperançosa de rever Rogério. O telefone pode tocar e ela ouvirá novamente sua voz. Ou ligará para o número inesquecível e ele atenderá. Mas acaba sentindo, certo dia, depois de muito sumiço, que nunca mais verá Rogério. É uma dor profunda. Pensa ainda, desesperada, em contratar um detetive particular, para tentar localizá-lo. Mas não chega a esse ponto. Ou, pelo menos, ainda não chegou, até o momento. Por enquanto, contrata outro advogado, numa tentativa de salvar o que ainda é possível dos aluguéis. Um ano depois, continua amando Rogério, mas, já, de alguma forma, conformada. Outro ano se passa. A ferida ainda existe, porém, e se ela cutucar... A essa altura só entende o que essa mulher sente quem gosta muito de jazz. E, de repente, ouve Billie Holliday cantando e, com uma punhalada no peito, identifica a melodia: Can't Help Lovin' Dat Man.

quinta-feira, 22 de março de 2012

Os acrobatas liam Júlio Cortázar antes de subir ao trapézio Aguinaldo Silva

Eu nunca lera nada sobre este cara chamado Júlio Cortázar. Mas pederastas já vira muitos, desde os tempos do colégio, quando nós os humilhávamos no banheiro, depois das aulas de educação física. Isso sem falar nas vezes em que cruzava com um deles nos cinemas, nos corredores mais escuros, nos mictórios públicos e nas madrugadas sombrias, locais e ocasiões em que essa raça parecia se sentir mais à vontade. Aqueles quatro, no entanto, me pareceram estranhos desde o primeiro instante. Primeiro porque andavam em fila, ordenados, um atrás do outro e todos silenciosos, sérios. Depois porque havia uma coisa difícil de explicar em seus corpos. Embora andassem calmamente, e evitassem gestos inúteis, a verdade é que eles, misturados às dezenas de pessoas que, naquela madrugada, se encontravam na estação rodoviária, mesmo que estivessem parados, ou até se fossem estátuas, me pareceriam, logo os visse, prestes a alçar vôo. Era como se a terra fosse para eles um rápido descanso, um momento antes de uma revoada para o céu, ou ao menos para os travões de ferro que cruzavam o teto inacabado da estação. Foi assim que os vi a primeira vez, quando passaram mergulhados no próprio silêncio, em fila, carregando a bagagem que não me pareceu muita - duas ou três valises. E mais ainda quando, depois, cruzei com eles à porta do ônibus que nos levaria a São Paulo — calçavam sapatos de borracha, eu observei, e aquele silêncio que faziam seus oito pés ao caminhar parecia um só, e planejado, metrificado e posto a funcionar num esquema: sendo. quatro, eram ao mesmo tempo um só, tão semelhantes me pareciam, e como se ligados pelo ritmo que os conduzia. Agora me pergunta como é que eu soube que se tratava de pederastas. Ora, acontece que os conhecia sempre, os pederastas, mesmo que estivessem imóveis e de olhos fechados, até mesmo quando estavam de costas eu tinha facilidade em reconhecê-los, coitados, nem sempre presos aos maneirismos e gestos que faziam conhecida a raça, mas iguais naquele olhar oblíquo, na maneira como punham um pé diante do outro, o da frente ligeiramente desviado para a direita ou para a esquerda, apontando nesta ou naquela direção. Muitas vezes, em determinados locais, eu vira quando um deles entrara, discreto, silencioso e solitário, cumprira esta ou aquela missão e se retirara, e eu dizia para mim mesmo, é um deles, e olhava em volta surpreso, já que ninguém, além de mim, o notara. Às vezes, se estava acompanhado, não resistia e murmurava para o meu companheiro, viu só aquele pederasta? E o outro surpreso perguntava, mas quem? Ou comentava, depois que eu o apontasse: mas é mesmo? Como é que você sabe? E era de madrugada, claro: uma hora da manhã na estação rodoviária. Só a essa hora eles ousariam viajar, tomar um ônibus para São Paulo, mesmo sendo quatro. Chegariam lá às sete horas, e ainda gozariam um pouco com o frio da manhã: beberiam café num dos bares próximos da estação, e depois desapareceriam pelas ruas próximas, ao que parece consumidos pelos primeiros raios do sol. À noite seria fatal encontrá-los outra vez em algum lugar escuso. Abriram a porta do ônibus, e o motorista foi recebendo os bilhetes, um a um. As pessoas se atacavam aflitos beijos de despedida — era como se São Paulo fosse o fim do mundo. E os quatro entraram um a um, à minha frente. No interior do ônibus meio escuro, tateei em busca do número que me fora reservado, e embora não tivesse ainda pensado nisso em nenhum momento, nem fiquei surpreso quando, ao sentar-me, encontrei um deles ao meu lado. Olhei de esguelha, pensei aborrecido que no meio da estrada ele iria me apalpar, procurei manifestar o meu aborrecimento de alguma forma: acendi a luz individual, procurei o cinzeiro, encontrei nele uma ponta de cigarro, murmurei um palavrão sem abrir os dentes, mas o rapazinho não deu atenção. Ao contrário, abriu calmamente sua valise, retirou de dentro dela um livro, acendeu sua luz individual e começou a ler. Esperei mais aborrecido ainda que seu cotovelo roçasse no meu — o livro poderia ser um simples pretexto —, mas os outros passageiros entraram, o motorista também, a porta foi fechada, acesas as luzes, e o ônibus deu partida. Os outros dois estavam sentados à frente, juntos no mesmo banco, e o quarto, à minha esquerda e um pouco atrás, acomodara-se próximo a um velho. O ônibus seguia e eu comecei a pensar em descontrair os músculos, tentar dormir. Foi quando, de esguelha, olhei o livro que ele lia. Aberto na página trinta e dois, trazia o nome no alto da página: Júlio Cortázar era o autor. E na seguinte, também no alto, o título, Rayuela. Eu não sabia o que significava essa palavra, mas ela, mal a li, brilhou no escuro, como se fosse mágica. Tanto isso aconteceu, que cresceu imediatamente nos meus lábios a pergunta, avolumou-se e, amarga, cheia de bílis e esverdeada, ela transpôs a barreira de meus dentes, rompeu a fraca contração dos meus lábios e espalhou-se na área próxima ao meu rosto, a pergunta como se fosse uma brisa, sibilina e meia morna: — Você lê esse cara? Sim, porque paralelamente me lembrara: em algum lugar, num jornal ou revista, lera qualquer coisa sobre esse sujeito, Cortázar, que escrevia e era misterioso, uma dessas situações pouco másculas que os escritores e artistas costumam alimentar. E, ao mesmo tempo, sabia agora, aquela palavra, quando lera o artigo, ficara gravada dentro de mim, Rayuela, e só à espera de um momento como este (e porque ele ainda não havia chegado é que eu disse, antes, que nunca lera nada sobre este Júlio Cortázar). O rapaz, que no rápido instante seguinte me pareceu já esperar pela pergunta, respondeu sem me olhar - nós lemos sempre Cortázar, desde que o descobrimos em Paris. E me olhando, então, pela primeira vez de frente, seus olhos que não ousei enfrentar (me pareceu, de repente, que eu resvalava numa direção contrária à normal), explicou: — O Waldo descobriu que nós somos seus personagens principais quando subimos ao arame. Somos equilibristas. E me apareceram então, como se impressas no ar ou gravadas em acinzentada fumaça, as palavras da manchete de um dos jornais do Rio: Secretário de Segurança proibiu a exibição dos Irmãos Fantini. Outra vez perguntei: — Irmãos Fantini? Sim, respondeu o outro, embora não sejamos irmãos, nem nos chamemos Fantini, a não ser o Waldo, que tem esse nome. Mas quando estamos no alto, sobre o fio, combinamos como se fôssemos irmãos. O fio: era lá que eles fariam a exibição. O fio de aço estendido entre dois prédios, cruzando a avenida central da cidade, à altura do décimo segundo andar. Os Irmãos Fantini, segundo o jornal, pernambucanos famosos em toda a Europa, atravessariam um a um, caminhando sobre o fio. E receberiam, em troca de tão terrível proeza, as doações que o generoso povo carioca lhes quisesse oferecer. Com o dinheiro conseguido, eles pretendiam retornar à Europa, mas, proibidos pelo Secretário de Segurança — que vira no espetáculo uma ameaça em potencial aos nervos da população —, haviam anunciado uma possível exibição em São Paulo, para onde se dirigiriam. E lá estavam, os quatro. — Deve ser um troço difícil, esse de ser equilibrista, não é? Novamente minha voz me desobedecia. E o rapaz, agora sem se voltar, entreabrindo o livro e folheando suas páginas — e, ao que me pareceu, retirando delas as frases que me ditava —, comentou sem sair de sua calma: depende. É uma questão de especialização. A mesma coisa que ser datilógrafo, ou motorista de caminhão. Difícil mesmo é encontrar o parceiro. Nós nos conhecemos numa feira. Andávamos os quatro, com dificuldade, na corda bamba, e nas feiras íamos conseguindo donativos suficientes para uma vida de miséria. Até que nos encontramos. O Waldo é que adivinhou as excelentes possibilidades que teríamos se nos juntássemos. Nós nos recolhemos a um sítio, lá no Recife, e foi nessa mesma cidade que cumprimos, depois de uns meses de treinos, nossa primeira exibição. O ônibus seguia rápido, inevitável. A voz do rapaz, que eu sabia ser pederasta — embora ele não traísse nenhum dos maneirismos habituais à raça — me envolvia. As palavras, no entanto, eram pronunciadas num sussurro, e mesmo sem verificá-lo, eu estava certo de que nossos vizinhos mais próximos não nos escutavam. Um deles, o da frente, até ressonava forte, quase roncava: — Foi um sucesso, essa nossa primeira exibição. O Waldo decidira que nós. viveríamos apenas do que o povo nos oferecesse. E foram muitos os donativos. Quando estávamos no ar, em plena travessia, pude escutar o silêncio gelado que se fazia lá embaixo. E quando o último de nós deu o passo final e se precipitou em direção à janela de onde o fio saía, ouvimos os quatro alguns soluços antes que viessem as palmas, os gritos entusiasmados. O povo se entusiasma facilmente, e mais facilmente ainda se emociona. E Waldo pedira que não ficássemos frios ante essa emoção. Ela valia por tudo o que nós pensássemos em ganhar. Anotei mentalmente esse nome, Waldo, e a ele acrescentei o outro: Waldo Fantini: um deles, o que usava óculos escuros, deveria ser o próprio. Perguntei, o Waldo usa óculos escuros? E o rapaz respondeu, sim, viu nosso retrato nos jornais? Sem poder explicar ao certo, resmunguei que sim, e ele continuou, já agora sem que eu fizesse qualquer pergunta: — Tanto dinheiro recolhemos que resolvemos viajar para a Europa. Nossa primeira exibição, cruzado o oceano, foi em Lisboa, onde os portugueses nos pareceram bastante apáticos. Ainda aí, alguns — parece que os mais pobres — choraram quando cumprimos os últimos passos. Proibidos em Madrid, pudemos fazer uma exibição em Barcelona. Novas lágrimas. Paris nos deu apenas alegrias, embora nessa alegria notássemos um sinal de fraqueza. Não somos assim tão cultos, mas na França, a impressão que tivemos é de que tudo é utilizado para dar ao visitante uma falsa impressão de euforia. Lá, no entanto, tivemos a felicidade de descobrir — ou nele nos descobrir — Cortázar. Uma manhã Waldo entrou precipitadamente no quarto que ocupávamos num hotel modesto (apesar do dinheiro ganho, vivemos sempre modestamente, evitamos o luxo que, sem dúvida, poderá fazer mal aos nossos músculos e às nossas mentes), e exibiu o livro: Rayuela. E explicou que o senhor Júlio Cortázar, que era argentino, mesmo sem nos conhecer havia escrito nossa história. — Desde então, passamos a ler o livro em rodízio, diariamente, ora um, ora outro. O Waldo, e apenas ele, fez várias anotações, que nós sempre estudávamos. A cada leitura descobrimos novas palavras, outras significações. E como se o livro crescesse sempre, fosse aumentando a cada dia o seu número de páginas. E nós estamos sempre em todas as linhas. O Fantini me explicou depois, que nem tudo fora êxito na breve carreira do grupo. De volta ao Recife, onde cumpriram outra exibição — já agora com a fama da Europa —, haviam sido roubados em quase tudo. E no Rio, onde o dinheiro já se tornara escasso, tiveram proibida a apresentação. São Paulo, para onde o ônibus se dirigia cruzando aquela escura noite, era sua nova esperança. — Se ganharmos o bastante, voltaremos para a Europa. E sempre folheando o livro entreaberto sobre os joelhos, mais falou de suas exibições. Citou outras três vezes o Waldo, e eu perguntei, quase aborrecido: — Mas o Waldo é quem manda no grupo? É o chefe? Ele respondeu que sim. De suas mãos saía toda a garantia do sucesso. Era ele quem iniciava a travessia, e o fazia quando o fio sequer estava estendido, pois a tarefa de estendê-lo era ele quem cumpria com seus próprios passos, lançando-se pela janela a fora, no décimo­segundo andar, em direção ao vazio, cumprindo uma terrível guerra contra as inflexíveis noções da gravidade e peso que os homens lá embaixo - os olhos pregados no alto - teimosamente sustentavam. E dessa batalha saía sempre vencedor, seu corpo avançando de dentro de si mesmo a cada passo, no centímetro seguinte já seu corpo novamente avançando, sempre trazendo presa entre os dentes a ponta do fio de aço que para trás ficara preso à primeira janela, o Waldo, o de óculos escuros, enquanto lá embaixo a multidão rezava para que ele rompesse realmente a barreira das leis — Waldo era um deles, afinal —, e na janela os outros irmãos, nem sequer tensos — tanto confiavam na vitória —, esperavam sua vez de atravessar a rua sobre o fio daquela invisível teia. E eu senti então que, desde a primeira vez que os vira, a entrada da estação, ou mesmo antes, quando lera nos jornais a notícia com os seus nomes, ou antes ainda, quando ouvira falar em Cortázar, em Rayuela, compreendi então que não fizera outra coisa senão me desprender de mim mesmo, despencar, ou resvalar em direção contrária à minha. E naquele ônibus, então, o que ocorreria? Perguntei, mas o Waldo, esse Waldo; o rapaz me interrompeu com um meio sorriso: — Já sei, quer conhecê-lo, não é? Não respondi que sim, mas me levantei ao mesmo tempo que ele. Lá na frente, notei que o quarto elemento do grupo se postara junto aos outros dois — um destes era o Waldo —, e que os três me esperavam. Caminhamos eu e meu companheiro em direção a eles, e lá, E Waldo dormia, a cabeça encostada de leve à janela, os olhos fechados, os óculos escuros guardados no bolso da camisa. Ele dormia mas acordou ao segundo chamado, ergueu de leve a cabeça e lentamente entreabriu os olhos; eu forcei os meus, mas — e foi então que o ônibus se precipitou de vez na escuridão da noite — de dentro dos olhos dele nada mais pude arrancar além da brancura que, impotente, me fitava. Waldo Fantini, o primeiro dos irmãos equilibristas, atingido na infância por um terrível mal, era definitivamente cego.

quarta-feira, 21 de março de 2012

A porca Tânia Jamardo Faillace

Era uma vez um meninozinho, que tinha muito medo. Era só soprar um vento forte, desses de levantar poeira no fundo do quintal e bater com os postigos da janela; era só haver uma nuvem escura, uma única, que tampasse o sol; era só esbarrar com a pipa d'água e ouvir o rico e pesado sacolejar da água dentro, para que o menino se encolhesse bem no centro de seu ventre, orelhas retesas, olhos muito abertos ou obstinadamente fechados. Depois, o menino levantava, limpava o pó do fundilho das calças e ia para o quintal. Conhecia as galinhas, os porcos, mas nenhum lhe pertencia. Achava mesmo engraçado quando via os irmãos abraçarem um leitãozinho, a irmã mais nova tentando, por força, enfiar uma de suas saias no bicho. Bicho é bicho, sabia ele. Bicho tem vida sua, diferente da de gente. Os irmãos não sabiam. Fingiam que eram bonecas, criancinhas pequenas e, nos dias de matança, todos já eram petiscos, brinquedo esquecido. O menino preferia olhá-los de longe. Tremia, quando a velha porca gorda fuçava por entre as tábuas do chiqueiro; corria, se ela estava solta, com sua gorda barriga pendente, seu gordo cachaço lanhado. A mãe também era gorda. Rachando lenha, carregando água, enorme e pesada bolota de carne. Tinha um rosto comprido, sulcado de rugas, boca sempre aberta, gritando com alguém. A porca não gritava, só roncava, mesmo quando o pai passava e lhe dava um pontapé. Um dia botou sangue — disseram que ia abortar. Ele teve medo de ver. Escondeu-se em casa, na cama, sob a colcha de fustão. E de repente, foi o grande choque. Cama sacudiu. Lastro despencou, e ele caiu, sufocado pelos travesseiros. Era o pai. A mãe lhe batia com um resto de vassoura... pela loucura... quatorze leitões... quatorze... e todos perdidos... o pai grunhia e protegia a cabeça. Ao redor, tudo era escuro. Sabia agora o que era um nenê de bicho. Havia sangue. Sempre havia sangue. Era um dia escuro. E em dias escuros, o menino tinha medo. O escuro era espesso, profundo, pegajoso, e sombras mais escuras eram manchas coaguladas. Havia um fio de luz, cinza-claro, sobre a pipa d'água. O menino se atreveu a ir bem junto dela. Puxou um banquinho e foi olhar. Como lhe doía a barriga, só de espichar, só de ver... a boca preta da pipa, a água grossa, molhada... E o menino caiu dentro da pipa... Não de verdade, de mentira... E encontrou uma porção de leitõezinhos lá no fundo, mas estavam pretos e encarquilhados. E ao pular de volta sobre seu banquinho, ao sentir toda a pipa sacudindo, o menino teve a idéia. Balançou forte, cada vez mais forte, a pipa veio pelo chão, despedaçando uma aranha, molhando a lenha, assustando a galinha choca que dormia debaixo do fogão. O pé do menino ficou preso, uma unha esmagada. Mas ele não chorou, fugiu. E fugiu para a rua... Porém o terreiro estava iluminado com uma luz muito pálida, a areia lisa, fina, as bananeiras imóveis e densas... Sentou-se no chão, sobre uma pedra pontuda, um pé em cima do outro, as mãos cruzadas no joelho. De noite, eram os corpos dos irmãos que se apertavam contra o dele. Mesmo de olhos fechados, sabia quem estava junto de si. A irmã tinha o costume de dar-lhe beliscões, e um dos irmãos sempre esperava que ele se distraísse para puxar-lhe aquilo. Depois ria, dizendo: "Por mais que se puxe, é uma coisinha de nada", e mostrava o seu, orgulhoso. Às vezes, o menino ia dormir no chão. Esperava que os grandes passassem para trás da cortina, ameaçava os irmãos e ia deitar na cozinha ou contra o cabide. Era pequeno, mas também sabia fazer coisas malvadas. Escutava o pai e a mãe. Suas vozes eram grossas, por vezes estridentes, e palavras feias estremeciam o ar, penduravam-se nas teias de aranha, nos arremates das mata-juntas. O lastro estalava, e havia risadas, de gengivas descobertas, de profundos ocos de garganta. Ir embora, era o que o menino desejava. Ir para um lugar onde a água fosse grande e livre, um mar infinito, como ouvira contar certa vez. Não haveria aves, nem porcos nem cachorros, apenas peixes, dourados e lisos... O menino habituou-se a correr. Corria ao ouvir as xingações da mãe, corria ao ouvir os tamancos do pai, corria ao ouvir as risadas dos irmãos. Corria ainda quando ouviu a voz da porca velha. Gritava. Não grunhidos, não roncos, mas gritos. O menino sentiu sua barriguinha encolher, aquilo se levantar em franco protesto. Na esquina da casa, lá estava o grupo: o pai, o empregado, a mãe, um vizinho, e qualquer coisa que rebolava feito doida na areia. As crianças se conservavam longe, as mãos nos ouvidos, as caras estúpidas. A mãe se afobava, a saia descosida arrastando no chão, dando ordens, xingando, gritando mais alto que a porca. O pai se remexia, o chapéu sobre a nuca, o nariz pingando de suor. E foi a mãe que arrancou a faca das mãos do vizinho num gesto brusco. E como gritava a porca... o menino só lhe via o rabinho e as patas trêmulas. E num instante, tudo ficou imóvel. Os homens forcejando, a mulher adquirindo impulso, gorda, redonda, enorme, sua saia de grandes flores desbotadas roçando o ventre da porca, os irmãos sumindo ao longe, a barriguinha do menino se retesando. E foi água que jorrou da porca. Água de fonte, vermelha, impetuosa, que fugiu de dentro do corpo, que saltou ao sol, que cabriolou, que explodiu na cara de todos... que sujou de sangue (agora era sangue) o braço da mãe, o rosto da mãe, o peito da mãe... que se esparramou no chapéu velho do pai, que respingou em seus bigodes... que cegou o vizinho, sufocou o empregado... foi aspirado por bocas, nariz, escorreu por pescoços e ombros. Agora era o pai quem batia na mãe, descompunha-a... "a camisa... a roupa do empregado, do vizinho... velha porcalhona..." O menino se agachou atrás da bananeira, com muita dor em sua barriguinha. E nunca mais beijou a mãe. ( Cem melhores contos brasileiros do século)

terça-feira, 20 de março de 2012

Linda, uma história horrível Caio Fernando Abreu

Para Sergio Keuchguerian "Você nunca ouviu falar em maldição nunca viu um milagre nunca chorou sozinha num banheiro sujo nem nunca quis ver a face de Deus." (Cazuza: "Só as mães são felizes") Só depois de apertar muitas vezes a campainha foi que escutou o rumor de passos descendo a escada. E reviu o tapete gasto, antigamente púrpura, depois apenas vermelho, mais tarde rosa cada vez mais claro — agora, que cor? — e ouviu o latido desafinado de um cão, uma tosse noturna, ruídos secos, então sentiu a luz acesa do interior da casa filtrada pelo vidro cair sobre sua cara de barba por fazer, três dias. Meteu as mãos nos bolsos, procurou um cigarro ou um chaveiro para rodar entre os dedos, antes que se abrisse a janelinha no alto da porta. Enquadrado pelo retângulo, o rosto dela apertava os olhos para vê-lo melhor. Mediram-se um pouco assim — de fora, de dentro da casa —, até ela afastar o rosto, sem nenhuma surpresa. Estava mais velha, viu ao entrar. E mais amarga, percebeu depois. — Tu não avisou que vinha — ela resmungou no seu velho jeito azedo, que antigamente ele não compreendia. Mas agora, tantos anos depois, aprendera a traduzir como que-saudade, seja-benvindo, que-bom-ver-você ou qualquer coisa assim. Mais carinhosa, embora inábil. Abraçou-a, desajeitado. Não era um hábito, contatos, afagos. Afundou tonto, rápido, naquele cheiro conhecido — cigarro, cebola, cachorro, sabonete, creme de beleza e carne velha, sozinha há anos. Segurando-o pelas duas orelhas, como de costume, ela o beijou na testa. Depois foi puxando-o pela mão, para dentro. — A senhora não tem telefone — explicou. — Resolvi fazer uma surpresa. Acendendo luzes, certa ânsia, ela o puxava cada vez mais para dentro. Mal podia rever a escada, a estante, a cristaleira, os porta-retratos empoeirados. A cadela se enrolou nas pernas dele, ganindo baixinho. — Sai, Linda — ela gritou, ameaçando um pontapé. A cadela pulou de lado, ela riu. — Só ameaço, ela respeita. Coitada, quase cega. Uma inútil, sarnenta. Só sabe dormir, comer e cagar, esperando a morte. — Que idade ela tem? — ele perguntou. Que esse era o melhor jeito de chegar ao fundo: pelos caminhos transversos, pelas perguntas banais. Por trás do jeito azedo, das flores roxas do robe. — Sei lá, uns quinze. — A voz tão rouca. — Diz—que idade de cachorro a gente multiplica por sete. Ele forçou um pouco a cabeça, esse era o jeito: — Uns noventa e cinco, então. Ela colocou a mala dele em cima de uma cadeira da sala. Depois apertou novamente os olhos. E espiou em volta, como se acabasse de acordar: — O quê? — A Linda. Se fosse gente, estaria com noventa e cinco anos. Ela riu: — Mais velha que eu, imagina. Velha que dá medo. — Fechou o robe sobre o peito, apertou a gola com as mãos. Cheias de manchas escuras, ele viu, como sardas (ce-ra-to-se, repetiu mentalmente), pintura alguma nas unhas rentes dos dedos amarelos de cigarros. — Quer um café? — Se não der trabalho — ele sabia que esse continuava sendo o jeito exato, enquanto ela adentrava soberana pela cozinha, seu reino. Mãos nos bolsos, olhou em volta, encostado na porta. As costas dela, tão curvas. Parecia mais lenta, embora guardasse o mesmo jeito antigo de abrir e fechar sem parar as portas dos armários, dispor xícaras, colheres, guardanapos, fazendo muito ruído e forçando-o a sentar — enquanto ele via. Manchadas de gordura, as paredes da cozinha. A pequena janela basculante, vidro quebrado. No furo do vidro, ela colocara uma folha de jornal. País mergulha no caos, na doença e na miséria — ele leu. E sentou na cadeira de plástico rasgado. — Tá fresquinho — ela serviu o café. — Agora só consigo dormir depois de tomar café. —A senhora não devia. Café tira o sono. Ela sacudiu os ombros: — Dane-se. Comigo sempre foi tudo ao contrário. A xícara amarela tinha uma nódoa escura no fundo, bordas lascadas. Ele mexeu o café, sem vontade. De repente, então, enquanto nem ele nem ela diziam nada, quis fugir. Como se volta a fita num videocassete, de costas, apanhar a mala, atravessar a sala, o corredor de entrada, ultrapassar o caminho de pedras do jardim, sair novamente para a ruazinha de casas quase todas brancas. Até algum táxi, o aeroporto, para outra cidade, longe do Passo da Guanxuma, até a outra vida de onde vinha. Anônima, sem laços nem passado. Para sempre, para nunca mais. Até a morte de qualquer um dos dois, teve medo. E desejou. Alívio, vergonha. — Vá dormir — pediu. — É muito tarde. Eu não devia ter vindo assim, sem avisar. Mas a senhora não tem telefone. Ela sentou à frente dele, o robe abriu-se. Por entre as flores roxas, ele viu as inúmeras linhas da pele, papel de seda amassado. Ela apertou os olhos, espiando a cara dele enquanto tomava um gole de café. — Que que foi? — perguntou, lenta. E esse era o tom que indicava a abertura para um novo jeito. Mas ele tossiu, baixou os olhos para a estamparia de losangos da toalha. Vermelho, verde. Plástico frio, velhos morangos. — Nada, mãe. Não foi nada. Deu saudade, só isso. De repente, me deu tanta saudade. Da senhora, de tudo. Ela tirou um maço de cigarros do bolso do robe: — Me dá o fogo. Estendeu o isqueiro. Ela tocou na mão dele, toque áspero das mãos manchadas de ceratose nas mãos muito brancas dele. Carícia torta: — Bonito, o isqueiro. — É francês. — Que é isso que tem dentro? — Sei lá, fluido. Essa coisa que os isqueiros têm. Só que este é transparente, nos outros a gente não vê. Ela ergueu o isqueiro contra a luz. Reflexos de ouro, o líquido verde brilhou. A cadela entrou por baixo da mesa, ganindo baixinho. Ela pareceu não notar, encantada com o por trás do verde, líquido dourado. — Parece o mar — sorriu. Bateu o cigarro na borda da xícara, estendeu o isqueiro de volta para ele. — Então quer dizer que o senhor veio me visitar? Muito bem. Ele fechou o isqueiro na palma da mão. Quente da mão manchada dela. — Vim, mãe. Deu saudade. Riso rouco: — Saudade? Sabe que a Elzinha não aparece aqui faz mais de mês? Eu podia morrer aqui dentro. Sozinha. Deus me livre. Ela nem ia ficar sabendo, só se fosse pelo jornal. Se desse no jornal. Quem se importa com um caco velho? Ele acendeu um cigarro. Tossiu forte na primeira tragada: — Também moro só, mãe. Se morresse, ninguém ia ficar sabendo. E não ia dar no jornal. Ela tragou fundo. Soltou a fumaça, círculos. Mas não acompanhou com os olhos. Na ponta da unha, tirava uma lasca da borda da xícara. — É sina — disse. — Tua avó morreu só. Teu avô morreu só. Teu pai morreu só, lembra? Naquele fim de semana que eu fui pra praia. Ele tinha horror do mar. Uma coisa tão grande que mete medo na gente, ele dizia. Jogou longe a bolinha com a pintura da xícara. — E nem um neto, morreu sem um neto nem nada. O que mais ele queria. — Já faz tempo, mãe. Esquece — ele endireitou as costas, doíam. Não, decidiu: naquele poço, não. O cheiro, uma semana, vizinhos telefonando. Passou as pontas dos dedos pelos losangos desbotados da toalha. — Não sei como a senhora consegue continuar morando aqui sozinha. Esta casa é grande demais pra uma pessoa só. Por que não vai morar com a Elzinha? Ela fingiu cuspir de lado, meio cínica. Aquele cinismo de telenovela não combinava com o robe desbotado de flores roxas, cabelos quase inteiramente brancos, mãos de manchas marrons segurando o cigarro quase no fim. — E agüentar o Pedro, com aquela mania de grandeza? Pelo amor de Deus, só se eu fosse sei lá. Iam ter que me esconder no dia das visitas, Deus me livre. A velha, a louca, a bruxa. A megera socada no quartinho de empregada, feito uma negra. — Bateu o cigarro. — E como se não bastasse, tu acha que iam me deixar levar a Linda junto? Embaixo da mesa, ao ouvir o próprio nome a cadela ganiu mais forte. — Também não é assim, não é, mãe? A Elzinha tem a faculdade. E o Pedro no fundo é boa gente. Só que. Ela remexeu nos bolsos do robe. Tirou uns óculos de hastes remendadas com esparadrapo, lente rachada. — Deixa eu te ver melhor — pediu. Ajeitou os óculos. Ele baixou os olhos. No silêncio, ficou ouvindo o tic-tac do relógio da sala. Uma barata miúda riscou o branco dos azulejos atrás dela. — Tu estás mais magro — ela observou. Parecia preocupada. — Muito mais magro. — É o cabelo — ele disse. Passou a mão pela cabeça quase raspada. E a barba, três dias. — Perdeu cabelo, meu filho. — É a idade. Quase quarenta anos. — Apagou o cigarro. Tossiu. — E essa tosse de cachorro? — Cigarro, mãe. Poluição. Levantou os olhos, pela primeira vez olhou direto nos olhos dela. Ela também olhava direto nos olhos dele. Verde desmaiado por trás das lentes dos óculos, subitamente muito atentos. Ele pensou: é agora, nesta contramão(*). Quase falou. Mas ela piscou primeiro. Desviou os olhos para baixo da mesa, segurou com cuidado a cadela sarnenta e a trouxe até o colo. — Mas vai tudo bem? — Tudo, mãe. — Trabalho? Ele fez que sim. Ela acariciou as orelhas sem pêlo da cadela. Depois olhou outra vez direto para ele: — Saúde? Dizque tem umas doenças novas aí, vi na tevê. Umas pestes. — Graças a Deus — ele cortou. Acendeu outro cigarro, as mãos tremiam um pouco. — E a dona Alzira, firme? A ponta apagada do cigarro entre os dedos amarelos, ela estava recostada na cadeira. Olhos apertados, como se visse por trás dele. No tempo, não no espaço. A cadela apoiara a cabeça na mesa, os olhos branquicentos fechados. Ela suspirou, sacudiu os ombros: — Coitada. Mais esclerosada do que eu. — A senhora não está esclerosada. — Tu que pensa. Tem vezes que me pego falando sozinha pelos cantos. Outro dia, sabe quem eu chamava o dia inteiro? — Esperou um pouco, ele não disse nada. — A Cândida, lembra dela? Ô negrinha boa, aquela. Até parecia branca. Fiquei chamando, chamando o dia inteiro. Cândida, ô Cândida. Onde é que tu te meteu, criatura? Aí me dei conta. — A Cândida morreu, mãe. Ela tornou a passar a mão pela cabeça da cadela. Mais devagar, agora. Fechou os olhos, como se as duas dormissem. — Pois é, esfaqueada. Que nem um porco, lembra? — Abriu os olhos. — Quer comer alguma coisa, meu filho? — Comi no avião. Ela fingiu cuspir de lado, outra vez. — Cruz credo. Comida congelada, Deus me livre. Parece plástico. Lembra daquela vez que eu fui? — Ele sacudiu a cabeça, ela não notou. Olhava para cima, para a fumaça do cigarro perdida contra o teto manchado de umidade, de mofo, de tempo, de solidão. — Fui toda chique, parecia uma granfa. De avião e tudo, uma madame. Frasqueira, raiban. Contando, ninguém acredita. — Molhou um pedaço de pão no café frio, colocou-o na boca quase sem dentes da cadela. Ela engoliu de um golpe. — Sabe que eu gostei mais do avião do que da cidade? Coisa de louco, aquela barulheira. Nem parece coisa de gente, como é que tu agüenta? — A gente acostuma, mãe. Acaba gostando. — E o Beto? — ela perguntou de repente. E foi baixando os olhos até encaixarem, outra vez, direto nos olhos dele. Se eu me debruçasse? — ele pensou. Se, então, assim. Mas olhou para os azulejos na parede atrás dela. A barata tinha desaparecido. — Tá lá, mãe. Vivendo a vida dele. Ela voltou a olhar o teto: — Tão atencioso, o Beto. Me levou pra jantar, abriu a porta do carro pra mim. Parecia coisa de cinema. Puxou a cadeira do restaurante pra eu sentar. Nunca ninguém tinha feito isso. — Apertou os olhos. — Como era mesmo o nome do restaurante? Um nome de gringo. — Casserole, mãe. La Casserole. — Quase sorriu, ele tinha uns olhos de menino, lembrou. — Foi boa aquela noite, não foi? — Foi — ela concordou. — Tão boa, parecia filme. — Estendeu a mão por sobre a mesa, quase tocou na mão dele. Ele abriu os dedos, certa ânsia. Saudade, saudade. Então ela recuou, afundou os dedos na cabeça pelada da cadela. — O Beto gostou da senhora. Gostou tanto — ele fechou os dedos. Assim fechados, passou—os pelos pêlos do próprio braço. Umas memórias, distância. — Ele disse que a senhora era muito chique. — Chique, eu? Uma velha grossa, esclerosada. — Ela riu, vaidosa, mão manchada no cabelo branco. Suspirou. — Tão bonito. Um moço tão fino, aquilo é que é moço fino. Eu falei pra Elzinha, bem na cara do Pedro. Pra ele tomar como indireta mesmo, eu disse bem alto, bem assim. Quem não tem berço, a gente vê logo na cara. Não adianta ostentar, tá escrito. Que nem o Beto, aquela calça rasgadinha. Quem ia dizer que era um moço assim tão fino, de tênis? — Voltou a olhar dentro dos olhos dele. — Isso é que é amigo, meu filho. Até meio parecido contigo, eu fiquei pensando. Parecem irmãos. Mesma altura, mesmo jeito, mesmo. — A gente não se vê faz algum tempo, mãe. Ela debruçou um pouco, apertando a cabeça da cadela contra a mesa. Linda abriu os olhos esbranquiçados. Embora cega, também parecia olhar para ele. Ficaram se olhando assim. Um tempo quase insuportável, entre a fumaça dos cigarros, cinzeiros cheios, xícaras vazias — os três, ele, a mãe e Linda. — E por quê? — Mãe — ele começou. A voz tremia. — Mãe, é tão difícil — repetiu. E não disse mais nada. Foi então que ela levantou. De repente, jogando a cadela ao chão como um pano sujo. Começou a recolher xícaras, colheres, cinzeiros, jogando tudo dentro da pia. Depois de amontoar a louça, derramar o detergente e abrir as torneiras, andando de um lado para outro enquanto ele ficava ali sentado, olhando para ela, tão curva, um pouco mais velha, cabelos quase inteiramente brancos, voz ainda mais rouca, dedos cada vez mais amarelados pelo fumo, guardou os óculos no bolso do robe, fechou a gola, olhou para ele e — como quem quer mudar de assunto, e esse também era um sinal para um outro jeito que, desta vez sim, seria o certo — disse: — Teu quarto continua igual, lá em cima. Vou dormir que amanhã cedo tem feira. Tem lençol limpo no armário do banheiro. Então fez uma coisa que não faria, antigamente. Segurou-o pelas duas orelhas para beijá-lo não na testa, mas nas duas faces. Quase demorada. Aquele cheiro — cigarro, cebola, cachorro, sabonete, cansaço, velhice. Mais qualquer coisa úmida que parecia piedade, fadiga de ver. Ou amor. Uma espécie de amor. — Amanhã a gente fala melhor, mãe. Tem tempo, dorme bem. Debruçado na mesa, acendeu mais um cigarro enquanto ouvia os passos dela subindo pesados pela escada até o andar superior. Quando ouviu a porta do quarto bater, levantou e saiu da cozinha. Deu alguns passos tontos pela sala. A mesa enorme, madeira escura. Oito lugares, todos vazios. Parou em frente ao retrato do avô — rosto levemente inclinado, olhos verdes aguados que eram os mesmos da mãe e também os dele, heranças. No meio do campo, pensou, morreu só com um revólver e sua sina. Levou a mão até o bolso interno do casaco, tirou a pequena garrafa estrangeira e bebeu. Quando a afastou, gotas de uísque rolaram pelos cantos da boca, pescoço, camisa, até o chão. A cadela lambeu o tapete gasto, olhos quase cegos, língua tateando para encontrar o líquido. Ele abriu os olhos. Como depois de uma vertigem, percebeu-se a olhar fixamente para o grande espelho da sala. No fundo do espelho na parede da sala de uma casa antiga, numa cidade provinciana, localizou a sombra de um homem magro demais, cabelos quase raspados, olhos assustados feito os de uma criança. Colocou a garrafa sobre a mesa, tirou o casaco. Suava muito. Jogou o casaco na guarda de uma cadeira. E começou a desabotoar a camisa manchada de suor e uísque. Um por um, foi abrindo os botões. Acendeu a luz do abajur, para que a sala ficasse mais clara quando, sem camisa, começou a acariciar as manchas púrpura, da cor antiga do tapete na escada — agora, que cor? —, espalhadas embaixo dos pêlos do peito. Na ponta dos dedos, tocou o pescoço. Do lado direito, inclinando a cabeça, como se apalpasse uma semente no escuro. Depois foi dobrando os joelhos até o chão. Deus, pensou, antes de estender a outra mão para tocar no pêlo da cadela quase cega, cheio de manchas rosadas. Iguais às do tapete gasto da escada, iguais às da pele do seu peito, embaixo dos pêlos. Crespos, escuros, macios. — Linda — sussurrou. — Linda, você é tão linda, Linda. ( Os cem melhores contos brasileiros do século)

segunda-feira, 19 de março de 2012

A Terceira Margem do Rio Guimarães Rosa

Nosso pai era homem cumpridor, ordeiro, positivo; e sido assim desde mocinho e menino, pelo que testemunharam as diversas sensatas pessoas, quando indaguei a informação. Do que eu mesmo me alembro, ele não figurava mais estúrdio nem mais triste do que os outros, conhecidos nossos. Só quieto. Nossa mãe era quem regia, e que ralhava no diário com a gente — minha irmã, meu irmão e eu. Mas se deu que, certo dia, nosso pai mandou fazer para si uma canoa. Era a sério. Encomendou a canoa especial, de pau de vinhático, pequena, mal com a tabuinha da popa, como para caber justo o remador. Mas teve de ser toda fabricada, escolhida forte e arqueada em rijo, própria para dever durar na água por uns vinte ou trinta anos. Nossa mãe jurou muito contra a idéia. Seria que, ele, que nessas artes não vadiava, se ia propor agora para pescarias e caçadas? Nosso pai nada não dizia. Nossa casa, no tempo, ainda era mais próxima do rio, obra de nem quarto de légua: o rio por aí se estendendo grande, fundo, calado que sempre. Largo, de não se poder ver a forma da outra beira. E esquecer não posso, do dia em que a canoa ficou pronta. Sem alegria nem cuidado, nosso pai encalcou o chapéu e decidiu um adeus para a gente. Nem falou outras palavras, não pegou matula e trouxa, não fez a alguma recomendação. Nossa mãe, a gente achou que ela ia esbravejar, mas persistiu somente alva de pálida, mascou o beiço e bramou: — "Cê vai, ocê fique, você nunca volte!" Nosso pai suspendeu a resposta. Espiou manso para mim, me acenando de vir também, por uns passos. Temi a ira de nossa mãe, mas obedeci, de vez de jeito. O rumo daquilo me animava, chega que um propósito perguntei: — "Pai, o senhor me leva junto, nessa sua canoa?" Ele só retornou o olhar em mim, e me botou a bênção, com gesto me mandando para trás. Fiz que vim, mas ainda virei, na grota do mato, para saber. Nosso pai entrou na canoa e desamarrou, pelo remar. E a canoa saiu se indo — a sombra dela por igual, feito um jacaré, comprida longa. Nosso pai não voltou. Ele não tinha ido a nenhuma parte. Só executava a invenção de se permanecer naqueles espaços do rio, de meio a meio, sempre dentro da canoa, para dela não saltar, nunca mais. A estranheza dessa verdade deu para. estarrecer de todo a gente. Aquilo que não havia, acontecia. Os parentes, vizinhos e conhecidos nossos, se reuniram, tomaram juntamente conselho. Nossa mãe, vergonhosa, se portou com muita cordura; por isso, todos pensaram de nosso pai a razão em que não queriam falar: doideira. Só uns achavam o entanto de poder também ser pagamento de promessa; ou que, nosso pai, quem sabe, por escrúpulo de estar com alguma feia doença, que seja, a lepra, se desertava para outra sina de existir, perto e longe de sua família dele. As vozes das notícias se dando pelas certas pessoas — passadores, moradores das beiras, até do afastado da outra banda — descrevendo que nosso pai nunca se surgia a tomar terra, em ponto nem canto, de dia nem de noite, da forma como cursava no rio, solto solitariamente. Então, pois, nossa mãe e os aparentados nossos, assentaram: que o mantimento que tivesse, ocultado na canoa, se gastava; e, ele, ou desembarcava e viajava s'embora, para jamais, o que ao menos se condizia mais correto, ou se arrependia, por uma vez, para casa. No que num engano. Eu mesmo cumpria de trazer para ele, cada dia, um tanto de comida furtada: a idéia que senti, logo na primeira noite, quando o pessoal nosso experimentou de acender fogueiras em beirada do rio, enquanto que, no alumiado delas, se rezava e se chamava. Depois, no seguinte, apareci, com rapadura, broa de pão, cacho de bananas. Enxerguei nosso pai, no enfim de uma hora, tão custosa para sobrevir: só assim, ele no ao-longe, sentado no fundo da canoa, suspendida no liso do rio. Me viu, não remou para cá, não fez sinal. Mostrei o de comer, depositei num oco de pedra do barranco, a salvo de bicho mexer e a seco de chuva e orvalho. Isso, que fiz, e refiz, sempre, tempos a fora. Surpresa que mais tarde tive: que nossa mãe sabia desse meu encargo, só se encobrindo de não saber; ela mesma deixava, facilitado, sobra de coisas, para o meu conseguir. Nossa mãe muito não se demonstrava. Mandou vir o tio nosso, irmão dela, para auxiliar na fazenda e nos negócios. Mandou vir o mestre, para nós, os meninos. Incumbiu ao padre que um dia se revestisse, em praia de margem, para esconjurar e clamar a nosso pai o 'dever de desistir da tristonha teima. De outra, por arranjo dela, para medo, vieram os dois soldados. Tudo o que não valeu de nada. Nosso pai passava ao largo, avistado ou diluso, cruzando na canoa, sem deixar ninguém se chegar à pega ou à fala. Mesmo quando foi, não faz muito, dos homens do jornal, que trouxeram a lancha e tencionavam tirar retrato dele, não venceram: nosso pai se desaparecia para a outra banda, aproava a canoa no brejão, de léguas, que há, por entre juncos e mato, e só ele conhecesse, a palmos, a escuridão, daquele. A gente teve de se acostumar com aquilo. Às penas, que, com aquilo, a gente mesmo nunca se acostumou, em si, na verdade. Tiro por mim, que, no que queria, e no que não queria, só com nosso pai me achava: assunto que jogava para trás meus pensamentos. O severo que era, de não se entender, de maneira nenhuma, como ele agüentava. De dia e de noite, com sol ou aguaceiros, calor, sereno, e nas friagens terríveis de meio-do-ano, sem arrumo, só com o chapéu velho na cabeça, por todas as semanas, e meses, e os anos — sem fazer conta do se-ir do viver. Não pojava em nenhuma das duas beiras, nem nas ilhas e croas do rio, não pisou mais em chão nem capim. Por certo, ao menos, que, para dormir seu tanto, ele fizesse amarração da canoa, em alguma ponta-de-ilha, no esconso. Mas não armava um foguinho em praia, nem dispunha de sua luz feita, nunca mais riscou um fósforo. O que consumia de comer, era só um quase; mesmo do que a gente depositava, no entre as raízes da gameleira, ou na lapinha de pedra do barranco, ele recolhia pouco, nem o bastável. Não adoecia? E a constante força dos braços, para ter tento na canoa, resistido, mesmo na demasia das enchentes, no subimento, aí quando no lanço da correnteza enorme do rio tudo rola o perigoso, aqueles corpos de bichos mortos e paus-de-árvore descendo — de espanto de esbarro. E nunca falou mais palavra, com pessoa alguma. Nós, também, não falávamos mais nele. Só se pensava. Não, de nosso pai não se podia ter esquecimento; e, se, por um pouco, a gente fazia que esquecia, era só para se despertar de novo, de repente, com a memória, no passo de outros sobressaltos. Minha irmã se casou; nossa mãe não quis festa. A gente imaginava nele, quando se comia uma comida mais gostosa; assim como, no gasalhado da noite, no desamparo dessas noites de muita chuva, fria, forte, nosso pai só com a mão e uma cabaça para ir esvaziando a canoa da água do temporal. Às vezes, algum conhecido nosso achava que eu ia ficando mais parecido com nosso pai. Mas eu sabia que ele agora virara cabeludo, barbudo, de unhas grandes, mal e magro, ficado preto de sol e dos pêlos, com o aspecto de bicho, conforme quase nu, mesmo dispondo das peças de roupas que a gente de tempos em tempos fornecia. Nem queria saber de nós; não tinha afeto? Mas, por afeto mesmo, de respeito, sempre que às vezes me louvavam, por causa de algum meu bom procedimento, eu falava: — "Foi pai que um dia me ensinou a fazer assim..."; o que não era o certo, exato; mas, que era mentira por verdade. Sendo que, se ele não se lembrava mais, nem queria saber da gente, por que, então, não subia ou descia o rio, para outras paragens, longe, no não-encontrável? Só ele soubesse. Mas minha irmã teve menino, ela mesma entestou que queria mostrar para ele o neto. Viemos, todos, no barranco, foi num dia bonito, minha irmã de vestido branco, que tinha sido o do casamento, ela erguia nos braços a criancinha, o marido dela segurou, para defender os dois, o guarda-sol. A gente chamou, esperou. Nosso pai não apareceu. Minha irmã chorou, nós todos aí choramos, abraçados. Minha irmã se mudou, com o marido, para longe daqui. Meu irmão resolveu e se foi, para uma cidade. Os tempos mudavam, no devagar depressa dos tempos. Nossa mãe terminou indo também, de uma vez, residir com minha irmã, ela estava envelhecida. Eu fiquei aqui, de resto. Eu nunca podia querer me casar. Eu permaneci, com as bagagens da vida. Nosso pai carecia de mim, eu sei — na vagação, no rio no ermo — sem dar razão de seu feito. Seja que, quando eu quis mesmo saber, e firme indaguei, me diz-que-disseram: que constava que nosso pai, alguma vez, tivesse revelado a explicação, ao homem que para ele aprontara a canoa. Mas, agora, esse homem já tinha morrido, ninguém soubesse, fizesse recordação, de nada mais. Só as falsas conversas, sem senso, como por ocasião, no começo, na vinda das primeiras cheias do rio, com chuvas que não estiavam, todos temeram o fim-do-mundo, diziam: que nosso pai fosse o avisado que nem Noé, que, por tanto, a canoa ele tinha antecipado; pois agora me entrelembro. Meu pai, eu não podia malsinar. E apontavam já em mim uns primeiros cabelos brancos. Sou homem de tristes palavras. De que era que eu tinha tanta, tanta culpa? Se o meu pai, sempre fazendo ausência: e o rio-rio-rio, o rio — pondo perpétuo. Eu sofria já o começo de velhice — esta vida era só o demoramento. Eu mesmo tinha achaques, ânsias, cá de baixo, cansaços, perrenguice de reumatismo. E ele? Por quê? Devia de padecer demais. De tão idoso, não ia, mais dia menos dia, fraquejar do vigor, deixar que a canoa emborcasse, ou que bubuiasse sem pulso, na levada do rio, para se despenhar horas abaixo, em tororoma e no tombo da cachoeira, brava, com o fervimento e morte. Apertava o coração. Ele estava lá, sem a minha tranqüilidade. Sou o culpado do que nem sei, de dor em aberto, no meu foro. Soubesse — se as coisas fossem outras. E fui tomando idéia. Sem fazer véspera. Sou doido? Não. Na nossa casa, a palavra doido não se falava, nunca mais se falou, os anos todos, não se condenava ninguém de doido. Ninguém é doido. Ou, então, todos. Só fiz, que fui lá. Com um lenço, para o aceno ser mais. Eu estava muito no meu sentido. Esperei. Ao por fim, ele apareceu, aí e lá, o vulto. Estava ali, sentado à popa. Estava ali, de grito. Chamei, umas quantas vezes. E falei, o que me urgia, jurado e declarado, tive que reforçar a voz: — "Pai, o senhor está velho, já fez o seu tanto... Agora, o senhor vem, não carece mais... O senhor vem, e eu, agora mesmo, quando que seja, a ambas vontades, eu tomo o seu lugar, do senhor, na canoa!..." E, assim dizendo, meu coração bateu no compasso do mais certo. Ele me escutou. Ficou em pé. Manejou remo n'água, proava para cá, concordado. E eu tremi, profundo, de repente: porque, antes, ele tinha levantado o braço e feito um saudar de gesto — o primeiro, depois de tamanhos anos decorridos! E eu não podia... Por pavor, arrepiados os cabelos, corri, fugi, me tirei de lá, num procedimento desatinado. Porquanto que ele me pareceu vir: da parte de além. E estou pedindo, pedindo, pedindo um perdão. Sofri o grave frio dos medos, adoeci. Sei que ninguém soube mais dele. Sou homem, depois desse falimento? Sou o que não foi, o que vai ficar calado. Sei que agora é tarde, e temo abreviar com a vida, nos rasos do mundo. Mas, então, ao menos, que, no artigo da morte, peguem em mim, e me depositem também numa canoinha de nada, nessa água que não pára, de longas beiras: e, eu, rio abaixo, rio a fora, rio a dentro — o rio.

sábado, 17 de março de 2012

Um título com medo Ana Peluso

Medo. Medo de escrever e não sair nada. Não rimar condão com fada. Não confrontar a metáfora com a ênclise, atrás da porta que acabei de grafar. Medo do til ter medo de altura, e transformar meu ão em um monossilábico ao, com a redução do o a u, uma semivogal. Medo do i não aceitar o pingo, e ao lado de um zero, formar uma facção de códigos binários. Medo do ar não entrar pelo fonema, e este nunca sair nasal. Medo do texto atonal. Medo da falta de rimas métricas e assimétricas. Medo de sequestro de letras. Do papel em branco. Medo do silêncio do teclado. Do estado hiperbólico das sentenças. Morrer de medo. Estar aquém de um grande verso. Medo do reverso da poética. A metálica forma do medo. Medo de escrever plástico só por sua acepção. Medo das crases. Dos acentos circunflexos, por não existirem os circônflacos. Medo dos flancos do dois pontos. Medo do assombro sem exclamação. Medo do não com ponto final. Do mal uso da cedilha. Das filhas da letra ésse quando se unem aos verbos. Do que fazem com eles. Medo da interrogação. Medo de títulos e epígrafes. Medo de gafes. Medo da origem das palavras. Se nascem mortas de medo. Medo das línguas esquecidas serem as mesmas das quais me lembro. Medo de abuso do texto. Do limite de linhas. Dos rodapés e rubricas. Medo que o trema não seja nunca mais utilizado. E com ele vá-se embora toda a intriga. Medo da falta de idéias. Ou do extremo oposto. Algumas delas ressurgirem do esquecimento para o repetido uso. Medo do p e b mudos. Do hífen do contra-ataque da curva dramática de um texto. Do abandono entre parênteses das reticências por medo. Medo do travessão e da vírgula. Do narrador e da terceira pessoa. Do protagonista. Do epílogo. De uma frase sair à toa. Medo de assinar o final do texto. Da confissão do confuso. Do mal hábito de sentir tudo muito absurdo. E saltar. Soltar a folha cheia de medos por cima do resto do mundo.

sexta-feira, 16 de março de 2012

Cortininha de filó Haroldo Maranhão

Para mim prima é mesmo que irmã, a gente respeita, mas Bela, sei lá!, tinha uns rompantes que até me assustavam. Naquela noite, por exemplo. Eu me embalava distraidíssimo na rede. Desde menino que durmo pouco, a Bela estava careca de saber e quando menos espero quem é vejo diante de mim? A Bela. A Bela dormia de pijama, minha tia achava camisão indecente, que pijama protege, a menina pode se mexer à vontade, frioleiras de velha. Pois a Bela me aparece apenasmente de blusa de pijama! Não entendi, francamente. e se não estivesse como estava acordado, poderia até imaginar que sonhava: a Bela ali de pijama decepado. Só para provocar como me provocou, que logo fiquei agitadíssimo, me virando e revirando na rede, e a Bela feita uma estátua, nem uma palavra dizia, à espera eu acho de atitude minha, mas cadê coragem?, que conforme disse prima é irmã, e de irmã não se olha coxa, não se olha bunda, irmã pode ficar pelada que a gente nem enxerga peitinho, cabelinho, nada. A danada da Bela sabia muitíssimo bem o que estava fazendo, que chegou um ponto que não suportei semelhante sofrimento, a dois metros da dona de um corpo fantástico. Me levantei da rede e me senti empurrado para os braços da Bela, que sem mais aquela me estrangulou que nem apuizeiro, e hoje penso que ela só esperava mesmo que me levantasse da rede, porque tudo o mais foi com ela, começando por me levar pelo escuro como guia de cego e sem nenhuma-nenhuma cerimônia deitou-se comigo na cama, que depois é que eu soube que os titios tinham saído, a gente estava só em casa e eu bestando na rede, quando bem podia estar há tempos naquele céu. A única coisa que fiz mesmo foi tirar a blusa do pijama dela e mais nada, que ela cuidou do resto, professora ,mais que escolada, e para começar espetou-me com os peitinhos num abraço que quase me mata. A Bela tinha prática, um fogo tremendo. E começou a maior das confusões, eu nuínho também, que nem sabia o que era minha perna e perna da Bela, as mãos da Bela me amassando a ponto de deixar em carne viva o meu bilu-bilu, que parece que ela estava com raiva do meu bilu-bilu, mas não era raiva e sim uma aflição que deu de repente na diaba da minha prima, que queria fazer tudo ao mesmo tempo, mas tinha só duas mãos, pegava no meu troço, largava, pegava de novo, se esfregava e parava de se esfregar. Agora vejo que não era prática coisíssima nenhuma da Bela, mas uma comichão que se alastrava lá nela. De repente parou, a respiração cortada em miudinhos, dando a impressão de que tinha brincado a tarde toda de juju. E eu, lógico, parei também e ficamos feitos dois patetas, olhando o teto, quer dizer, a Bela é que olhava o teto, que eu não sabia se tínhamos terminado, se me vestia e ia embora para a rede. Nós estávamos colados, braços, coxas e pernas, de alto a baixo, parece que eu estava com uma febre de quarenta graus ou mais. Me sentia ótimo, ela podia olhar o teto o resto da vida e aí eu fechei os olhos e flutuava lele-leve, não sentia nada por baixo de mim, é como se estivesse voando, fora da cama, como se por baixo não houvesse coisa sólida, só ar. Foi quando a Bela virou-se para mim e começou a passar as unhas pela barriga me causando uma friagem e umas cócegas e pegou desta vez com uma delicadeza que até me espantou, o meu negócio inchadíssimo, parecendo que tinha sido picado por um enxame de cabas. Ela olhava para ele de muito perto, virava e revirava o cartuchinho de carne, um picolé quente, que não derretia. Percebi indecisão na Bela. E então falou a única palavra naquela noite, uma palavra só, palavra de três letras, que eu morro e não esqueço essa palavra: “Vem!” Ora, a Bela tinha cada uma! "Vem." Ir aonde se eu estava ali? Ela falou "vem" muito, muito delicadamente, me puxou e eu tudo deixava, deixei, fui deixando, a Bela pelo visto sabia muito bem o que estava querendo. “Vem." Ela me guiou que eu não sabia nem a décima parte da missa, às vezes se .impacientava com a minha santa burrice e para a Bela deve ter sido um trabalho dos seiscentos, mas ela insistia e insistia, acabou me botando de bruços por cima dela. Aí abriu as pernas e eu fiquei feito um bobo naquele espação sem saber o que fazer. A Bela fez tudo, tudo,.e gemia como se doesse e devia doer. Foi quando percebi que uma cortina de papel se rasgava e eu entrei por um corredorzinho ensopado. Aí deu nela um nervoso, sei lá o que foi!, ela me empurrou, me expulsando com raiva, eu mais que depressa saí, que não era nada besta de contrariar a Bela. Então percebi uma bruta mancha no lençol. O lençol tinha bem no centro um laguinho de sangue.

quinta-feira, 15 de março de 2012

As mãos de meu filho Erico Verissimo

Todos aqueles homens e mulheres ali na platéia sombria parecem apagados habitantes dum submundo, criaturas sem voz nem movimento, prisioneiros de algum perverso sortilégio. Centenas de olhos estão fitos na zona luminosa do palco. A luz circular do refletor envolve o pianista e o piano, que neste instante formam um só corpo, um monstro todo feito de nervos sonoros. Beethoven. Há momentos em que o som do instrumento ganha uma qualidade profundamente humana. O artista está pálido à luz de cálcio. Parece um cadáver. Mas mesmo assim é uma fonte de vida, de melodias, de sugestões — a origem dum mundo misterioso e rico. Fora do círculo luminoso pesa um silêncio grave e parado. Beethoven lamenta-se. É feio, surdo, e vive em conflito com os homens. A música parece escrever no ar estas palavras em doloroso desenho. Tua carta me lançou das mais altas regiões da felicidade ao mais profundo abismo da desolação e da dor. Não serei, pois, para ti e para os demais, senão um músico? Será então preciso que busque em mim mesmo o necessário ponto de apoio, porque fora de mim não encontro em quem me amparar. A amizade e os outros sentimentos dessa espécie não serviram senão para deixar malferido o meu coração. Pois que assim seja, então! Para ti, pobre Beethoven, não há felicidade no exterior; tudo terás que buscar dentro de ti mesmo. Tão-somente no mundo ideal é que poderás achar a alegria. Adágio. O pianista sofre com Beethoven, o piano estremece, a luz mesma que os envolve parece participar daquela mágoa profunda. Num dado momento as mãos do artista se imobilizam. Depois caem como duas asas cansadas. Mas de súbito, ágeis e fúteis, começam a brincar no teclado. Um scherzo. A vida é alegre. Vamos sair para o campo, dar a mão às raparigas em flor e dançar com elas ao sol... A melodia, no entanto, é uma superfície leve, que não consegue esconder o desespero que tumultua nas profundezas. Não obstante, o claro jogo continua. A música saltitante se esforça por ser despreocupada e ter alma leve. É uma dança pueril em cima duma sepultura. Mas de repente, as águas represadas rompem todas as barreiras, levam por diante a cortina vaporosa e ilusória, e num estrondo se espraiam numa melodia agitada de desespero. O pianista se transfigura. As suas mãos galopam agitadamente sobre o teclado como brancos cavalos selvagens. Os sons sobem no ar, enchem o teatro, e para cada uma daquelas pessoas do submundo eles têm uma significação especial, contam uma história diferente. Quando o artista arranca o último acorde, as luzes se acendem. Por alguns rápidos segundos há como que um hiato, e dir-se-ia que os corações param de bater. Silêncio. Os sub-homens sobem à tona da vida. Desapareceu o mundo mágico e circular formado pela luz do refletor. O pianista está agora voltado para a platéia, sorrindo lividamente, como um ressuscitado. O fantasma de Beethoven foi exorcizado. Rompem os aplausos. Dentro de alguns momentos torna a apagar-se a luz. Brota de novo o círculo mágico. Suggestion Diabolique. D. Margarida tira os sapatos que lhe apertam os pés, machucando os calos. Não faz mal. Estou no camarote. Ninguém vê. Mexe os dedos do pé com delícia. Agora sim, pode ouvir melhor o que ele está tocando, ele, o seu Gilberto. Parece um sonho... Um teatro deste tamanho. Centenas de pessoas finas, bem vestidas, perfumadas, os homens de preto, as mulheres com vestidos decotados — todos parados, mal respirando, dominados pelo seu filho, pelo Betinho! D. Margarida olha com o rabo dos olhos para o marido. Ali está ele a seu lado, pequeno, encurvado, a calva a reluzir foscamente na sombra, a boca entreaberta, o ar pateta. Como fica ridículo nesse smoking! O pescoço descarnado, dançando dentro do colarinho alto e duro, lembra um palhaço de circo. D. Margarida esquece o marido e torna a olhar para o filho. Admira-lhe as mãos, aquelas mãos brancas, esguias e ágeis. E como a música que o seu Gilberto toca é difícil demais para ela compreender, sua atenção borboleteia, pousa no teto do teatro, nos camarotes, na cabeça duma senhora lá embaixo (aquele diadema será de brilhantes legítimos?) e depois torna a deter-se no filho. E nos seus pensamentos as mãos compridas do rapaz diminuem, encolhem, e de novo Betinho é um bebê de quatro meses que acaba de fazer uma descoberta maravilhosa: as suas mãos... Deitado no berço, com os dedinhos meio murchos diante dos olhos parados, ele contempla aquela coisa misteriosa, solta gluglus de espanto, mexe os dedos dos pés, com os olhos sempre fitos nas mãos... De novo D. Margarida volta ao triste passado. Lembra-se daquele horrível quarto que ocupavam no inverno de 1915. Foi naquele ano que o Inocêncio começou a beber. O frio foi a desculpa. Depois, o coitado estava desempregado... Tinha perdido o lugar na fábrica. Andava caminhando à toa o dia inteiro. Más companhias. "Ó Inocêncio, vamos tomar um traguinho?" Lá se iam, entravam no primeiro boteco. E vá cachaça! Ele voltava para casa fazendo um esforço desesperado para não cambalear. Mas mal abria a boca, a gente sentia logo o cheiro de caninha. "Com efeito, Inocêncio! Você andou bebendo outra vez!" Ah, mas ela não se abatia. Tratava o marido como se ele tivesse dez anos e não trinta. Metia-o na cama. Dava-lhe café bem forte sem açúcar, voltava apara a Singer, e ficava pedalando horas e horas. Os galos já estavam cantando quando ela ia deitar, com os rins doloridos, os olhos ardendo. Um dia... De súbito os sons do piano morrem. A luz se acende. Aplausos. D. Margarida volta ao presente. Ao seu lado Inocêncio bate palmas, sempre de boca aberta, os olhos cheios de lágrimas, pescoço vermelho e pregueado, o ar humilde... Gilberto faz curvaturas para o público, sorri, alisa os cabelos. ("Que lindos cabelos tem o meu filho, queria que a senhora visse, comadre, crespinhos, vai ser um rapagão bonito.) A escuridão torna a submergir a platéia. A luz fantástica envolve pianista e piano. Algumas notas saltam, como projéteis sonoros. Navarra. Embalada pela música (esta sim, a gente entende um pouco), D. Margarida volta ao passado. Como foram longos e duros aqueles anos de luta! Inocêncio sempre no mau caminho. Gilberto crescendo. E ela pedalando, pedalando, cansando os olhos; a dor nas costas aumentando, Inocêncio arranjava empreguinhos de ordenado pequeno. Mas não tinha constância, não tomava interesse. O diabo do homem era mesmo preguiçoso. O que queria era andar na calaçaria, conversando pelos cafés, contando histórias, mentindo... — Inocêncio, quando é que tu crias juízo? O pior era que ela não sabia fazer cenas. Achava até graça naquele homenzinho encurvado, magro, desanimado, que tinha crescido sem jamais deixar de ser criança. No fundo o que ela tinha era pena do marido. Aceitava a sua sina. Trabalhava para sustentar a casa, pensando sempre no futuro de Gilberto. Era por isso que a Singer funcionava dia e noite. Graças a Deus nunca lhe faltava trabalho. Um dia Inocêncio fez uma proposta: — Escuta aqui, Margarida. Eu podia te ajudar nas costuras... — Minha Nossa! Será que tu queres fazer casas ou pregar botões? — Olha, mulher. (Como ele estava engraçado, com sua cara de fuinha, procurando falar a sério!) Eu podia cobrar as contas e fazer a tua escrita. Ela desatou a rir. Mas a verdade é que Inocêncio passou a ser o seu cobrador. No primeiro mês a cobrança saiu direitinho. No segundo mês o homem relaxou... No terceiro, bebeu o dinheiro da única conta que conseguira cobrar. Mas D. Margarida esquece o passado. Tão bonita a música que Gilberto está tocando agora... E como ele se entusiasma! O cabelo lhe cai sobre a testa, os ombros dançam, as mãos dançam... Quem diria que aquele moço ali, pianista famoso, que recebe os aplausos de toda esta gente, doutores, oficiais, capitalistas, políticos... o diabo! — é o mesmo menino da rua da Olaria que andava descalço brincando na água da sarjeta, correndo atrás da banda de música da Brigada Militar... De novo a luz. As palmas. Gilberto levanta os olhos para o camarote da mãe e lhe faz um sinal breve com a mão, ao passo que seu sorriso se alarga, ganhando um brilho particular. D. Margarida sente-se sufocada de felicidade. Mexe alvoroçadamente com os dedos do pé, puro contentamento. Tem ímpetos de erguer-se no camarote e gritar para o povo: "Vejam, é o meu filho! O Gilberto. O Betinho! Fui eu que lhe dei de mamar! Fui eu que trabalhei na Singer para sustentar a casa, pagar o colégio para ele! Com estas mãos, minha gente. Vejam! Vejam!" A luz se apaga. E Gilberto passa a contar em terna surdina as mágoas de Chopin. No fundo do camarote Inocêncio medita. O filho sorriu para a mãe. Só para a mãe. Ele viu... Mas não tem direito de se queixar... O rapaz não lhe deve nada. Como pai ele nada fez. Quando o público aplaude Gilberto, sem saber está aplaudindo também Margarida. Cinqüenta por cento das palmas devem vir para ela. Cinqüenta ou sessenta? Talvez sessenta. Se não fosse ela, era possível que o rapaz não desse para nada. Foi o pulso de Margarida, a energia de Margarida, a fé de Margarida que fizeram dele um grande pianista. Na sombra do camarote, Inocêncio sente que ele não pode, não deve participar daquela glória. Foi um mau marido. Um péssimo pai. Viveu na vagabundagem, enquanto a mulher se matava no trabalho. Ah! Mas como ele queria bem ao rapaz, como ele respeitava a mulher! Às vezes, quando voltava para casa, via o filho dormindo. Tinha um ar tão confiado, tão tranqüilo, tão puro, que lhe vinha vontade de chorar. Jurava que nunca mais tornaria a beber, prometia a si mesmo emendar-se. Mas qual! Lá vinha um outro dia e ele começava a sentir aquela sede danada, aquela espécie de cócegas na garganta. Ficava com a impressão de que se não tomasse um traguinho era capaz de estourar. E depois havia também os maus companheiros. O Maneca. O José Pinto. O Bebe-Fogo. Convidavam, insistiam... No fim de contas ele não era nenhum santo. Inocêncio contempla o filho. Gilberto não puxou por ele. A cara do rapaz é bonita, franca, aberta. Puxou pela Margarida. Graças a Deus. Que belas coisas lhe reservará o futuro? Daqui para diante é só subir. A porta da fama é tão difícil, mas uma vez que a gente consegue abri-la... adeus! Amanhã decerto o rapaz vai aos Estados Unidos... É capaz até de ficar por lá... esquecer os pais. Não. Gilberto nunca esquecerá a mãe. O pai, sim... E é bem-feito. O pai nunca teve vergonha. Foi um patife. Um vadio. Um bêbedo. Lágrimas brotam nos olhos de Inocêncio. Diabo de música triste! O Betinho devia escolher um repertório mais alegre. No atarantamento da comoção, Inocêncio sente necessidade de dizer alguma coisa. Inclina o corpo para a frente e murmura: — Margarida... A mulher volta para ele uma cara séria, de testa enrugada. — Chit! Inocêncio recua para a sua sombra. Volta aos seus pensamentos amargos. E torna a chorar de vergonha, lembrando-se do dia em que, já mocinho Gilberto lhe disse aquilo. Ele quer esquecer aquelas palavras, quer afugenta-las, mas elas lhe soam na memória, queimando como fogo, fazendo suas faces e suas orelhas arderem. Ele tinha chegado bêbedo em casa. Gilberto olhou-o bem nos olhos e disse sem nenhuma piedade: — Tenho vergonha de ser filho dum bêbedo! Aquilo lhe doeu. Foi como uma facada, dessas que não só cortam as carnes como também rasgam a alma. Desde esse dia ele nunca mais bebeu. No saguão do teatro, terminado o concerto, Gilberto recebe cumprimentos dos admiradores. Algumas moças o contemplam deslumbradas. Um senhor gordo e alto, muito bem vestido, diz-lhe com voz profunda: — Estou impressionado, impressionadíssimo. Sim senhor! Gilberto enlaça a cintura da mãe: — Reparto com minha mãe os aplausos que eu recebi esta noite... Tudo que sou, devo a ela. — Não diga isso, Betinho! D. Margarida cora. Há no grupo um silêncio comovido. Depois rompe de novo a conversa. Novos admiradores chegam. Inocêncio, de longe, olha as pessoas que cercam o filho e a mulher. Um sentimento aniquilador de inferioridade o esmaga, toma-lhe conta do corpo e do espírito, dando-lhe uma vergonha tão grande como a que sentiria se estivesse nu, completamente nu ali no saguão. Afasta-se na direção da porta, num desejo de fuga. Sai. Olha a noite, as estrelas, as luzes da praça, a grande estátua, as árvores paradas... Sente uma enorme tristeza. A tristeza desalentada de não poder voltar ao passado... Voltar para se corrigir, para passar a vida a limpo, evitando todos os erros, todas as misérias... O porteiro do teatro, um mulato de uniforme cáqui, caminha dum lado para outro, sob a marquise. — Linda noite! — diz Inocêncio, procurando puxar conversa. O outro olha o céu e sacode a cabeça, concordando. — Linda mesmo. Pausa curta. — Não vê que sou o pai do moço do concerto... — Pai? Do pianista? O porteiro pára, contempla Inocêncio com um ar incrédulo e diz: — O menino tem os pulsos no lugar. É um bicharedo. Inocêncio sorri. Sua sensação de inferioridade vai-se evaporando aos poucos. — Pois imagine como são as coisas — diz ele. — Não sei se o senhor sabe que nós fomos muito pobres... Pois é. Fomos. Roemos um osso duro. A vida tem coisas engraçadas. Um dia... o Betinho tinha seis meses... umas mãozinhas assim deste tamanho... nós botamos ele na nossa cama. Minha mulher dum lado, eu do outro, ele no meio. Fazia um frio de rachar. Pois o senhor sabe o que aconteceu? Eu senti nas minhas costas as mãozinhas do menino e passei a noite impressionado, com medo de quebrar aqueles dedinhos, de esmagar aquelas carninhas. O senhor sabe, quando a gente está nesse dorme-não-dorme, fica o mesmo que tonto, não pensa direito. Eu podia me levantar e ir dormir no sofá. Mas não. Fiquei ali no duro, de olho mal e mal aberto, preocupado com o menino. Passei a noite inteira em claro, com a metade do corpo para fora da cama. Amanheci todo dolorido, cansado, com a cabeça pesada. Veja como são as coisas... Se eu tivesse esmagado as mãos do Betinho hoje ele não estava aí tocando essas músicas difíceis... Não podia ser o artista que é. Cala-se. Sente agora que pode reclamar para si uma partícula da glória do seu Gilberto. Satisfeito consigo mesmo e com o mundo, começa a assobiar baixinho. O porteiro contempla-o em silêncio. Arrebatado de repente por uma onda de ternura, Inocêncio tira do bolso das calças uma nota amarrotada de cinqüenta mil-réis e mete-a na mão do mulato. — Para tomar um traguinho — cochicha. E fica, todo excitado, a olhar para as estrelas.( Os cem melhores contos brasileiros do século)