terça-feira, 2 de agosto de 2011


LEITURA E DIALOGIZAÇÃO

Trilha Batida

Em todos os caminhos,
vestígios de outros passos.
A própria voz se perde
No vozear imenso
Há muito, alguém pensou
Os nossos pensamentos.
Só existe um refúgio,
Uma posse
Um domínio defendido:
O profundo de nós mesmos,
Singular
E indevassável
(KOLODY, 1985,p. 44)






O poema acima transcrito revela-nos a heteroglossia e sua dialogização infinda às quais Faraco
(2003) atribui aspectos de grande valor na obra de Bakhtin. Esta seria a utopia de um mundo
polifônico, conforme Bakthin, revelada em seu estudo sobre a narrativa em Dostoievski, isto é, a
utopia de um mundo polifônico em que todas as vozes seriam eqüipolentes, democrático e
pluralista, onde nenhuma voz social seria imposta como a única e verdadeira palavra. Precisamos
ter sempre em mente a dimensão das relações sociointeracionais para o sujeito como explica
Bakthin (2001):
Viver significa tomar parte no diálogo: fazer perguntas, dar respostas, dar atenção, responder, estar
de acordo e assim por diante. Desse diálogo uma pessoa participa integralmente no correr de sua
vida: com seus olhos, lábios, mãos, alma, espírito, com seu corpo todo e com todos os seus feitos.
Ela investe seu ser inteiro no discurso e esse discurso penetra no tecido dialógico da vida humana,
o simpósio universal”. (BAKTIN APUD FARACO, 2001,p. 73)
Para entender o processo de leitura, necessitamos, além do conhecimento
lingüístico, conforme Martins (1982), de “todo um sistema de relações
interpessoais e entre as várias áreas do conhecimento e da expressão do homem e
das suas circunstâncias de vida (Martins, 1982, pp. 13 e 14).
Além das considerações feitas acima, faz-se necessário acrescentar as reflexões de Deleuze e
Guattari (1996), já citadas nesse trabalho:
Não há língua em si mesmo, nem qualquer universalidade da língua, mas um concurso de potois,
gírias, línguas especiais. Não existe um falante-ouvinte “competente” ideal, não existe também uma
comunidade lingüística homogênea... Não há língua materna, mas um embrago de poder por uma
língua dominante no intrior da multiplicidade lingüística”. (DELEUZE E GUATARRI, APUD
CHANG,p. 184)
Considerando que, no interior da língua, as palavras e seus significados mudam de
um discurso para outro e de um momento para outro, conseqüência não apenas da
variação da língua, mas das contradições materiais no campo social onde vários
discursos tomam forma e coexistem, entendemos que as práticas de leitura
necessitam dar atenção à variante lingüística utilizada pelo aluno, percebendo as
múltiplas determinações do uso desta variante. Percebe-se, na escola, uma prática
de leitura utilitarista, que usa a literatura para transmitir conhecimentos, ensinar
regras morais, noções gramaticais, classificar gêneros e correntes literárias.
As práticas de leitura utilizadas na escola pesquisada oscilam entre uma concepção de texto como
objeto passivo, portanto, a partir deste se definem as atividades que o aluno deverá fazer, sem
distinção de disciplinas. O texto é passado ao aluno ou em cópias, ou indicado no livro didático,
escrito no quadro-de-giz, ou até mesmo ditado pelo professor. Não há um trabalho com os gêneros,
esses são considerados imutáveis, ou apenas na sua intrincação material, ou conjunto abstrato de
formas. Os professores que usam esta prática, iniciam pela leitura do texto, muitas vezes cantada,
ou seja, feita pelo professor com acompanhamento dos alunos, ou do texto fragmentado para ser
lido por vários alunos, e terminam com atividades escritas relacionadas à compreensão do texto.
Um outro aspecto observado é de que os alunos ficam de tal forma acostumados a esse processo,
que basta o professor escrever alguma coisa no quadro para que estes façam perguntas do tipo: É
para copiar? É muito comprido? Vale nota?
Outra concepção, centrada no leitor, considera o texto como objeto aberto, oportunizando ao leitor
fazer considerações sobre o que leu, porém sem nada acrescentar em conhecimento. Esta prática é
muito associada a “dinâmicas” em que o professor também tem um papel passivo. Observa-se que o
professor que utiliza tais práticas é considerado pelos alunos como inovador, aquele que dá aulas
atraentes.
Os alunos que convivem com tais práticas demonstram dificuldade para entender a mudança de
gêneros que se dá em textos múltiplos que lhes são apresentados. Antes de ler, perguntam: O que é
para fazer? Não entendi o que é para fazer, dá para explicar? Enfim, estes alunos não sabem
ler.Muitos professores trabalham com as duas tendências, pois acredita que assim não será
censurado por ser tradicional em seus métodos.
A concepção interativa de leitura entende o texto como polissêmico e o professor-leitor será o
mediador entre texto e aluno, apresentando diversos tipos de textos e diversos suportes de leitura.
Os gêneros têm, cada um, especificidades, determinadas pelas condições e finalidades a que
responde. Bakthin (2003) chama a atenção para dois tipos de gênero: um chamado de gênero de
discurso primário (simples) e outro de discurso secundário (complexo).
Muitos dos alunos que freqüentam a escola pública são originários de meios com maior tradição
oral (gênero primário) e passam a conviver, na escola com os gêneros secundários mais complexos,
dos quais não têm noção. Na escola pesquisada existe uma representação curiosa sobre a língua,
muitos professores descontam pontos nos trabalhos escritos dos alunos quando estes escrevem de
forma ortograficamente incorreta. É necessário que o professor saiba a diferença entre os dois tipos
de gênero, como explica Gnerre (1998).
Existe uma diferença incomensurável entre o tipo de informação descontextualizada presente na
prosa expositiva e “científica”, resultado de longos processos históricos através dos quais passaram
as línguas “de cultura”, por um lado, e as maneiras narrativas e orais de comunicar, organizar e
transmitir o saber tradicional e todas as informações, também as novas, por outro lado. Na sua
essência, este é um problema de distância entre tradição oral e um tipo muito específico de tradição
escrita, que não é aquela dos gêneros poéticos em que, de alguma forma, podíamos encontrar
características comuns com os usos orais da linguagem, mas aquelas do gênero do tratado
científico-expositivo, no qual se prezam a sinteticidade, a clareza e a ordem de exposição. Esse tipo
de produção escrita é certamente o mais distante de qualquer gênero de produção lingüística que
podemos encontrar numa sociedade de tradição oral. (Gnerre, 1998, p.104)
Há necessidade, portanto, que o professor, para fazer a mediação texto-leitor, tenha conhecimento
das estruturas textuais a fim de direcionar o aluno a perceber aspectos importantes do texto,
estimular o senso de investigação e de autonomia deste. Assim, reiteramos a função social da
leitura, a necessidade de acesso e conservação dos acervos pessoais, coletivos e institucionais.
Há que se lutar contra o discurso que estabelece a leitura como um ócio descompromissado e a
biblioteca como museu, pois os livros precisam circular e as pessoas necessitam ter acesso a todos
suportes de leitura.
A sociedade, em todos seus segmentos, é a responsável pelo letramento cultural e, desta forma, pela
inclusão social, conseqüentemente toda a escola deve ter conhecimento da função da leitura e de
seus aspectos cognitivos, pois, só desta forma poderemos propor práticas de leitura adequadas à
sociedade em que vivemos.
É urgente a proposição de ações efetivas em vários setores da sociedade, principalmente, na
formação de professores, segmento de grande importância para uma reflexiva mudança na
concepção e no trabalho com a leitura em nossas escolas, pois, segundo Faraco (2001):
“É indispensável que os diferentes pontos de vista, que as diferentes perspectivas sociais, que os
diferentes discursos não se isolem em trincheiras, não se retirem para o espaço privado, nem
exerçam o poder sem possibilidade real de contestação; mas se enfrentem fraca e abertamente no
espaço público”. (FARACO, 2001, p. 35)
Muitas das tendências atuais sobre a leitura têm em comum a descrença no
conhecimento objetivo e enfatizam a necessidade do conhecimento subjetivo. Dessa forma, as
representações de fatos são vistas como hipóteses, ou versões, dependentes das condições de produção e
do contexto.
O conceito tradicional de leitura como decodificação, ou, mesmo, como interpretação
de significados estabilizados está de acordo com a suposição de que a linguagem é um instrumento
manejado e controlado por nós.
A esse respeito reflete Mariani (2002):
.,. compreende-se que a linguagem organiza nossa realidade, nosso imaginário e nossa memória.
Nascemos em um mundo previamente organizado pela linguagem: passamos a vida repetindo e/ ou
resistindo, e/ ou rompendo, para transformar sentidos que já circulam no tecido sociocultural. Sem a
linguagem, não nos constituímos sujeitos, mas, ao mesmo tempo, é necessário compreender que
não somos onipotentes: não podemos dizer tudo, não controlamos totalmente os sentidos. Estar na
linguagem é estar significando e sendo significado. Nada é óbvio em se tratando de linguagem, por
mais que pareça ser. O sujeitoleitor se encontra inscrito neste processo histórico produzindo
sentidos, ou seja, interpretando sua relação com o mundo. Ao mesmo tempo, ele também é
produzido na linguagem, tornando-se “produto” de sentidos ideologicamente cristalizados. Ler,
nesta outra perspectiva, não é “descobrir” um sentido primeiro ou original. Ao contrário, é saber,
criticamente, que o sentido pode ser outro. ( MARIANI, pp. 107 e 108)
Assim, percebemos que os discursos estão circulando na sociedade, que estes nos enredam, mas
que também somos sujeitos dos discursos, que, muitas vezes, podem ser inconscientes. Segundo Yunes
(2003) :
Se as palavras dependem de quem as diz para terem este ou aquele sentido, é importante conhecer o
sujeito que as controla, escolhe, usa. Do mesmo modo, quem lê o faz com toda a sua carga pessoal
de vida e experiência, consciente ou não dela, e atribui ao lido as marcas pessoais de memória,
intelectual e emocional. Para ler, portanto, é necessário que estejamos minimamente dispostos a
desvelar o sujeito que somos,ou seja, lugar do qual nos pronunciamos- ou que desejamos construir
pela tomada de consciência da linguagem e de nossa história, nos traços deixados pelas memórias
particulares, coletivas e institucionais. (YUNES, 2003, p. 10)
Percebemos pelas considerações feitas acima que pouco se sabe sobre a leitura em relação à
sua história, forma, funcionamento e funções, tanto na escola quanto nas próprias mantenedoras das escolas, pois estas, por exemplo, quando planejam as Semanas Pedagógicas, instrumento para a formação continuada do professor, enviam numerosos textos, de vários autores, porém com um
único exemplar de cada. A partir desta questão, de aspecto essencialmente técnico, pode-se entender a concepção de leitura vigente em tais instituições, pois encaminham o material para o trabalho de leitura dos textos para estudo nas escolas, em número tão insignificante, para que seja realizado em forma de grupo, com leitura oral, leitura explicada e seguida, fato que, de início, exclui a maior parte das pessoas, primeiro porque não tem seu material de leitura e, segundo, porque alguns que possuem mais conhecimento, ou falam sobre sua própria leitura, ou se descomprometem com o trabalho.
Entretanto, a leitura não pode ser encarada como uma atividade redentora, pois esta é, de fato,
uma prática social e, o produto de tal prática resulta na representação da representação de algo presente no texto que se lê. Tal produto não significa, necessariamente, uma suprema verdade já que textos são, sempre, discursos que revelam representações de mundo e de sociedade.
É necessário que desvendemos as vozes que dirigem nosso discurso, isto é, a voz do senso
comum, da ideologia, da nossa comunidade interpretativa. A leitura pode permitir um deslocamento de horizonte essencial para que o leitor situe o texto em sua historicidade e em sua experiência,
conhecendo a si mesmo e podendo, assim, resistir à dominação ideológica presente de forma muito
acentuada nas escolas públicas, objeto deste trabalho.
joyce de castro sanchotene
mestre em letras e educação


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