domingo, 5 de agosto de 2012

Contrabandista João Simões Lopes Neto



Batia nos noventa anos o corpo magro mas sempre teso do Jango Jorge,
um que foi capitão duma maloca de contrabandistas que fez cancha nos
banhados do Ibirocaí.
Esse gaúcho desabotinado levou a existência inteira a cruzar os campos
da fronteira: à luz do sol, no desmaiado da lua, na escuridão das noites, na
cerração das madrugadas...; ainda que chovesse reiúnos acolherados ou que
ventasse como por alma de padre, nunca errou vau, nunca perdeu atalho,
nunca desandou cruzada!...
Conhecia as querências, pelo faro: aqui era o cheiro do açouta-cavalo
florescido, lá o dos trevais, o das guabirobas rasteiras, do capim-limão; pelo
ouvido: aqui, cancha de graxains, lá os pastos que ensurdecem ou estalam
no casco do cavalo; adiante, o chape-chape, noutro ponto, o areão. Até pelo
gosto ele dizia a parada, porque sabia onde estavam águas salobres e águas
leves, com sabor de barro ou sabendo a limo.
Tinha vindo das guerras do outro tempo; foi um dos que peleou na
batalha de Ituzaingo; foi do esquadrão do general José de Abreu e sempre
que falava do Anjo da Vitória ainda tirava o chapéu, numa braçada larga,
como se cumprimentasse alguém de muito respeito, numa distância muito
longe.
Foi sempre um gaúcho quebralhão, e despilchado sempre, por ser
muito de mãos abertas.
Se numa mesa de primeira ganhava uma ponchada de balastracas,
reunia a gurizada da casa, fazia - pi! pi! pi! pi! - como pra galinhas e
semeava as moedas, rindo-se do formigueiro que a miuçalha formava,
catando as pratas no terreiro.
Gostava de sentar um laçaço num cachorro, mas desses laçaços de
apanhar a paleta à virilha, e puxado a valer, tanto, que o bicho que o tomava,
ficando entupido de dor, e lombeando-se, depois de disparar um pouco é
que gritava, num - caim! caim! caim! - de desespero.
Outras vezes dava-lhe para armar uma jantarola, e sobre o fim do festo,
quando já estava tudo meio entropigaitado, puxava por uma ponta da toalha
e lá vinha, de tirão seco, toda a traquitanda dos pratos e copos e garrafas e
restos de comidas e caldas dos doces!...
Depois garganteava a chuspa e largava as onças pras unhas do bolicheiro, que
aproveitava o vento e le echaba cuentas degran capitãn...
Era um pagodista!
Aqui há poucos anos - coitado - pousei no arranchamento dele.
Casado ou doutro jeito, estava afamilhado. Não nos víamos desde muito
tempo.
A dona da casa era uma mulher mocetona ainda, bem parecida e mui
prazenteira; de filhos, uns três matalotes já emplumados e uma mocinha -
pro caso, uma moça -, que era o - santo-antoninho-onde-te-porei! -
daquela gente toda.
E era mesmo uma formosura; e prendada, mui habilidosa; tinha andado
na escola e sabia botar os vestidos esquisitos das cidadãs da vila.
E noiva, casadeira, já era.
E deu o caso, que quando eu pousei, foi justo pelas vésperas do
casamento; estavam esperando o noivo e o resto do enxoval dela.
O noivo chegou no outro dia, grande alegria; começaram os aprontamentos, e
como me convidaram com gosto, fiquei pro festo.
O Jango Jorge saiu na madrugada seguinte, para ir buscar o tal enxoval
da filha.
Aonde, não sei; parecia-me que aquilo devia ser feito em casa, à moda
antiga, mas, como cada um manda no que é seu...
Fiquei verdeando, à espera, e fui dando um ajutório na matança dos
leitões e no tiramento dos assados com couro.
Nesta terra do Rio Grande sempre se contrabandeou, desde em antes
da tomada das Missões.
Naqueles tempos o que se fazia era sem malícia, e mais por divertir e
acoquinar as guardas do inimigo: uma partida de guascas montava a cavalo,
entrava na Banda Oriental e arrebanhava uma ponta grande de eguariços,
abanava o poncho e vinha a meia-rédea; apartava-se a potrada e largava-se o
resto; os de lá faziam conosco a mesma cousa; depois era com gados, que se
tocava a trote e galope, abandonando os assoleanos.
Isto se fazia por despique dos espanhóis e eles se pagavam desquitando-se do
mesmo jeito.
Só se cuidava de negacear as guardas do Cerro Largo, em Santa Tecla,
no Haedo... O mais, era várzea!
Depois veio a guerra das Missões; o governo começou a dar sesmarias
e uns quantíssimos pesados foram-se arranchando por essas campanhas
desertas. E cada um tinha que ser um rei pequeno... e agüentar-se com as
balas, as lunares e os chifarotes que tinha em casa!...
Foi o tempo do manda-quem-pode!... E foi o tempo que o gaúcho, o
seu cavalo e o seu facão, sozinhos, conquistaram e defenderam estes pagos!...
Quem governava aqui o continente era um chefe que se chamava o
capitão-general; ele dava as sesmarias mas não garantia o pelego dos
sesmeiros...
Vancê tome tenência e vá vendo como as cousas, por si mesmas, se
explicam.
Naquela era, a pólvora era do el-rei nosso senhor e só por sua licença é
que algum particular graúdo podia ter em casa um polvarim...
Também só na vila de Porto Alegre é que havia baralhos de jogar, que
eram feitos só na fábrica do rei nosso senhor, e havia fiscal, sim, senhor,
das cartas de jogar, e ninguém podia comprar senão dessas! Por esses tempos antigos também o tal rei nosso senhor mandou botar pra fora os ourives da vila do Rio Grande e acabar com os lavrantes e
prendistas dos outros lugares desta terra, só pra dar flux aos retnois...
Agora imagine vancê se a gente lá de dentro podia andar com tantas
etiquetas e pedindo louvado pra se defender, pra se divertir e pra luxar!...
O tal rei nosso senhor não se enxergava, mesmo!...
E logo com quem!... Com a gauchada!...
Vai então, os estancieiros iam em pessoa ou mandavam ao outro lado,
nos espanhóis, buscar pólvora e balas, pras pederneiras, cartas de jogo e
prendas de ouro pras mulheres e preparos de prata pros arreios...; e ninguém
pagava dízimos dessas cousas.
Às vezes lá voava pelos ares um cargueiro, com cangalhas e tudo, numa
explosão de pólvora; doutras uma partilha de milicianos saía de atravessado
e tomava conta de tudo, a couce d’arma: isto foi ensinando a escaramuçar
com os golas-de-couro.
Nesse serviço foram-se aficionando alguns gaúchos: recebiam as
encomendas e pra aproveitar a monção e não ir com os cargueiros debalde,
levavam baeta, que vinha do reino, e fumo em corda, que vinha da Bahia, e
algum porrão de canha. E faziam trocas, de elas por elas, quase.
Os paisanos das duas terras brigavam, mas os mercadores sempre se
entendiam...
Isto veio mais ou menos assim até a guerra dos Farrapos; depois vieram
as califórnias do Chico Pedro; depois a guerra do Rosas.
Aí inundou-se a fronteira da província de espanhóis e gringos emigrados.
A cousa então mudou de figura. A estrangeirada era mitrada, na regra,
e foi quem ensinou a gente de cá a mergulhar e ficar de cabeça enxuta...;
entrou nos homens a sedução de ganhar barato: bastava ser campeiro e
destorcido. Depois, andava-se empandilhado, bem armado; podia-se às vezes
dar um vareio nos milicos, ajustar contas com algum devedor de desaforos,
aporrear algum subdelegado abelhudo...
Não se lidava com papéis nem contas de cousas: era só levantar os
volumes, encangalhar, tocar e entregar!...
Quanta gauchagem leviana aparecia, encostava-se.
Rompeu a guerra do Paraguai.
O dinheiro do Brasil ficou muito caro: uma onça de ouro, que corria
por trinta e dois, chegou a valer quarenta e seis mil-réis!... Imagine o que
a estrangeirada bolou nas contas!...
Começou-se a cargueirear de um tudo: panos, águas de cheiro, armas,
minigâncias, remédios, o diabo a quatro!... Era só pedir por boca!
Apareceram também os mascates de campanha, com baús encangalhados e canastras,
que passavam pra lá vazios e voltavam cheios, desovar
aqui...
Polícia pouca, fronteira aberta, direitos de levar couro e cabelo e nas
coletarias umas papeladas cheias de benzeduras e rabioscas...
Ora... ora!... Passar bem, paisano!... A semente grelou e está a árvore
ramalhuda, que vancê sabe, do contrabando de hoje.
O Jango Jorge foi maioral nesses estropícios. Desde moço. Até a hora
da morte. Eu vi.
Como disse, na madrugada véspera do casamento o Jango Jorge saiu
para ir buscar o enxoval da filha.
Passou o dia; passou a noite.
No outro dia, que era o do casamento, até de tarde, nada.
Havia na casa uma gentama convidada; da vila, vizinhos, os padrinhos, autoridades, moçada. Havia de se dançar três dias!... Corria o amargo e
copinhos de licor de butiá.
Roncavam cordeonas no fogão, violas na ramada, uma caixa de música
na sala.
Quase ao entrar do sol a mesa estava posta, vergando ao peso dos pratos
enfeitados.
A dona da casa, por certo traquejada nessas bolandinas do marido,
estava sossegada, ao menos ao parecer.
As vezes mandava um dos filhos ver se o pai aparecia, na volta da estrada,
encoberta por uma restinga fechada de arvoredo.
Surgiu dum quarto o noivo, todo no trinque, de colarinho duro e casaco
de rabo. Houve caçoadas, ditérios, elogios.
Só faltava a noiva; mas essa não podia aparecer, por falta do seu vestido
branco, dos seus sapatos brancos, do seu véu branco, das suas flores de
laranjeira, que o pai fora buscar e ainda não trouxera.
As moças riam-se; as senhoras velhas cochichavam.
Entardeceu.
Nisto correu voz que a noiva estava chorando: fizemos uma algazarra
e ela - tão boazinha! - veio à porta do quarto, bem penteada, ainda num
vestidinho de chita de andar em casa, e pôs-se a rir pra nós, pra mostrar que
estava contente.
A rir, sim, rindo na boca, mas também a chorar lágrimas grandes, que
rolavam devagar nos olhos pestanudos...
E rindo e chorando estava, sem saber por quê... sem saber por que,
rindo e chorando, quando alguém gritou do terreiro:
- Aí vem o Jango Jorge, com mais gente!...
Foi um vozerio geral; a moça porém ficou, como estava, no quadro da
porta, rindo e chorando, cada vez menos sem saber por quê... pois o pai
estava chegando e o seu vestido branco, o seu véu, as suas flores de noiva...
Era já fusco-fusco. Pegaram a acender as luzes.
E nesse mesmo tempo parava no terreiro a comitiva; mas num silêncio,
tudo.
E o mesmo silêncio foi fechando todas as bocas e abrindo todos os
olhos.
Então vimos os da comitiva descerem de um cavalo o corpo entregue
de um homem, ainda de pala enfiado...
Ninguém perguntou nada, ninguém informou de nada; todos entenderam tudo...;
que a festa estava acabada e a tristeza começada...
Levou-se o corpo pra sala da mesa, para o sofá enfeitado, que ia ser o
trono dos noivos. Então um dos chegados disse:
- A guarda nos deu em cima... tomou os cargueiros... E mataram o
capitão, porque ele avançou sozinho pra mula ponteira e suspendeu um
pacote que vinha solto.., e ainda o amarrou no corpo... Aí foi que o crivaram
de balas... parado... Os ordinários!... Tivemos que brigar, pra tomar
o corpo!
A sia-dona mãe da noiva levantou o balandrau do Jango Jorge e
desamarrou o embrulho; abriu-o.
Era o vestido branco da filha, os sapatos brancos, o véu branco, as flores
de laranjeira...
Tudo numa plastada de sangue... tudo manchado de vermelho, toda
a alvura daquelas cousas bonitas como que bordada de cobrado, num padrão
esquisito, de feitios estrambólicos... como flores de cardo solferim esmagadas
a casco de bagual!...
 Então rompeu o choro na casa toda.
 

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